Pe. Peter Scott, da FSSPX, trad. de Felipe Coelho
Por meio de seu Manifesto Comunista de 1848, Marx e Engels lançaram o moderno movimento socialista, que tirou a conclusão lógica dos princípios da Revolução Francesa e declarou que “a posse particular de propriedade produtiva é considerada inválida e imoral, ao passo que a posse de propriedade de consumo é permitida” (E. Cahill, S.J., The Framework of a Christian State [O modelo de um Estado cristão], p. 158). Pareceria ultrajante traçar um paralelo entre esse documento ateu, causa de revolução, guerras, assassinatos e sofrimentos sem conta, e a terceira encíclica do Papa[sic (N.doT.)] Bento XVI, Caritas in veritate, datada de 29 de junho de 2009. Contudo, um exame do texto demonstra que ele é verdadeiramente um manifesto de humanismo, levando à sua conclusão lógica os princípios da Revolução Francesa, rejeitando toda posse exclusiva e particular da verdade, pelos católicos e pelos demais, permitindo meramente que ela seja compartilhada e comunicada, isto é, consumida por todos em igual fraternidade e liberdade.
Como católicos, como podemos não ficar indignados com uma comparação dessas? Afinal de contas, o que pode parecer mais católico que o título “Caridade na verdade”, que é claramente modificado a partir da expressão usada por São Paulo, “para que não mais sejamos meninos flutuantes, e levados, ao sabor de todo vento de doutrina, pela malignidade dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro; mas praticando a verdade na caridade” (Ef. 4:14,15: note-se, porém, a transformação)? O que há de mais reassegurador que a recordação constante de que a caridade e a verdade não podem ser separadas, pois a “verdade há-de ser procurada, encontrada e expressa na « economia » da caridade, mas a caridade por sua vez há-de ser compreendida, confirmada e praticada sob a luz da verdade” (§2)? O que há de mais elevado que uma nova visão da questão social que vai além e mais alto do que a simples questão de “justiça” e “direitos” mencionada pelos Papas preconciliares, pois a “caridade está no coração da doutrina social da Igreja” (§2)? O que há de mais consolador que a afirmação de que “não existem duas tipologias de doutrina social, uma pré-conciliar e outra pós-conciliar, diversas entre si, mas um único ensinamento” (§12)! O que há de mais necessário que a recordação de que o homem precisa de Deus: “porque o desenvolvimento humano integral … requer uma visão transcendente da pessoa, tem necessidade de Deus” (§11).
NOVO CONCEITO DE CARIDADE
Contudo, a semelhança com o ensinamento católico não passa das palavras empregadas, palavras cujo significado é alterado radicalmente. O primeiro indício disto está contido no próprio título. A encíclica não é dirigida somente aos católicos, mas também a “todas as pessoas de boa vontade”. A compreensão e aceitação deste documento não é algo que requer a Fé Católica. Isso também aparece claramente na introdução, que não pretende delinear os princípios de uma ordem social católica, mas, em vez disso, o princípio do “desenvolvimento humano integral” para todos os homens, que é a caridade. Há, desde o início desta encíclica, um novo conceito de caridade, que “é a força propulsora principal que está por trás do autêntico desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira” (§1)! Claramente, o Papa não pode estar falando da virtude sobrenatural e infusa da caridade, pois isso seria afirmar que todos os homens estão no estado de graça santificante e que nenhum homem está em pecado mortal!
Não, a “caridade” sobre a qual ele escreve pertence a todos os homens: “Por ser um dom recebido por todos, a caridade-na-verdade é uma força que constroi a comunidade, unifica os homens sem impor barreiras nem limites.” (§34). Ele está se referindo ao novo conceito de caridade que ele elaborou em sua primeira encílica, Deus caritas est [N.doT: cf., do Autor, seu comentário à primeira encíclica de Bento XVI, em: http://www.fsspx-brasil.com.br/page 05-7.htm]. Nesta, Bento XVI explicou o “verdadeiro humanismo” da Igreja (Deus caritas est, §§ 9, 30), que pretende ensinar ao homem sua humanidade por meio da superação da distinção entre um amor próprio natural e um amor divino auto-sacrificante, pois “quanto mais os dois (eros e ágape) encontrarem uma unidade conveniente … na única realidade do amor, tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral” (Ibid., §7). O amor é, conseqüentemente, “uma única realidade” (ibid., §8).
Não devemos mais falar de caridade sobrenatural como tal, mas devemos antes dizer que a caridade não conhece essas distinções mas engloba todo amor humano. Daí a definição de caridade na presente encíclica: “a caridade pode ser reconhecida como expressão autêntica de humanidade e como elemento de importância fundamental nas relações humanas” (§ 3). A caridade pertence, então, à humanidade toda, e é característica de todas as boas relações humanas. Isso é naturalismo puro, que equaciona os motivos natural e sobrenatural da caridade fundindo-os num só. Não há, em decorrência disso, nenhuma distinção a ser feita entre o papel sobrenatural da Igreja com respeito a seus próprios membros e um papel muito mais abrangente, mais universal e mais alto que ela tem para com a humanidade toda, e é este que o Papa proclama como sendo a finalidade última dela.
A FINALIDADE MAIS ALTA DA IGREJA
Baseando-se no Vaticano II (Gaudium et spes) e nas encíclicas do Papa Paulo VI (Populorum progressio) e João Paulo II (Sollicitudo rei socialis) sobre o mesmo assunto, ele declara que doravante a Igreja “está a serviço do mundo”—a gente se pergunta o que aconteceu com a declaração bem não-humanista de São João: “Se alguém ama o mundo, não há nele a caridade do Pai” (I Jo 2:15)—e que, conseqüentemente, no que quer que ela faça (e.g. obras de caridade, culto divino), ela “está engajada na promoção do desenvolvimento integral do homem. Ela tem um papel público que não se esgota nas suas atividades de assistência ou de educação, mas revela todas as suas energias a serviço da promoção do homem e da fraternidade universal…” (§11). O objetivo dela, que não se esgota nas suas atividades particulares, deve ser, portanto, o de levar adiante os princípios da Revolução Francesa, seguindo o ideal do naturalismo maçônico. Daí o papel fundamental dela no processo de globalização, como veremos.
NOVO CONCEITO DE VERDADE
A verdade é igualmente redefinida. Não deve mais ser considerada como a correspondência da mente com a realidade exterior e objetiva, e consequentemente como algo fixo, firme, absoluto e imutável. Pelo contrário, a verdade é por sua própria natureza uma comunicação ou partilha com outros, a tal ponto que a pessoa que se fecha em sua própria “verdade”, não importa quão objetiva ele considere que ela é, na realidade se fechou em suas opiniões subjetivas e é impossível que atinja a verdade, pela simples razão de que ele não é capaz de dialogar ou compartilhar opiniões com os outros. Eis a definição de verdade do Papa, fazendo um jogo com a expressão grega para [designar] o Verbo (de Deus): “Com efeito, a verdade é « lógos » que cria « diá-logos » e, conseqüentemente, comunicação e comunhão”. A verdade exige a comunicação com a verdade dos outros. A sentença imediatamente seguinte explica o que ele quer dizer com comunicação, a saber: se uma pessoa não está disposta a abrir mão de suas opiniões pessoais, ela não pode ter a verdade: “A verdade, fazendo sair os homens de suas opiniões e impressões subjetivas, permite-lhes ultrapassar determinações culturais e históricas para se encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas” (§4). Sem tal partilha com os outros, não existe verdade, pois o homem está isolado em suas “opiniões subjetivas”. Note-se que não há distinção entre as convicções firmemente possuídas da Fé Católica e outras opiniões firmemente possuídas. Em ambos os casos, não pode haver verdade sem partilha mútua.
É por essa razão que “a missão a serviço da verdade é, para a Igreja, irrenunciável”, e com isso ele quer dizer que “a Igreja procura a verdade” (§9); sim, a missão da Igreja é procurar a verdade (e anunciá-la e reconhecê-la), não ensinar “a” verdade como algo já adquirido. Aqui está a explicação, dada no mesmo parágrafo, de por que o humanismo (= fidelidade ao homem) é a base da missão da Igreja a serviço da verdade: “A fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade e da possibilidade de um desenvolvimento humano integral. É por isso que a Igreja procura a verdade”. Donde a declaração simplesmente extraordinária de que “A verdade liberta a caridade dos estrangulamentos … do fideísmo, que a priva de um horizonte humano e universal” (§3). O fideísmo, anteriormente um termo para indicar a heresia dos que negam o papel da razão, é aqui empregado como um termo pejorativo para descrever aqueles cujas convicções pessoais de Fé impedem que eles se entreguem ao diálogo, e que consequentemente não são capazes de alcançar a verdade, pois eles não têm o desenvolvimento humano necessário para compartilhar.
EVOLUÇÃO DA VERDADE
A contradição com o ensinamento pré-Vaticano II da Igreja é manifesta e óbvia, razão pela qual o Papa sente a necessidade de se justificar. Note-se que ele não nega que os Papas preconciliares dizem coisas diferentes, mas afirma, em vez disso, que “existe um único ensinamento, coerente e simultaneamente sempre novo” (§12). Ele prossegue explicando o que ele quer dizer com essa aparente (e, de fato, real) contradição: novo e antigo ao mesmo tempo. É a perfeita justificativa do liberal, que vive em contradição objetiva consigo mesmo, incoerente com suas próprias conclusões, encontrando a coerência noutra parte que não na verdade objetiva. “Coerência não significa um sistema fechado (entenda-se por isto um sistema de ensinamento tradicional, fechado ao diálogo com o que lhe é exterior): pelo contrário, significa fidelidade dinâmica a uma luz recebida”. A assim chamada continuidade com o passado está, consequentemente, não nos próprios ensinamentos, mas na “luz imutável” que situa os ensinamentos pós-conciliares “dentro da grande corrente da Tradição” (ibid.).
Aqui encontramos claramente declarado o ensinamento da evolução da verdade e da doutrina, tão essencial à heresia do modernismo e tão claramente condenado por São Pio X: “Pois entre os pontos principais da sua doutrina, contam também este, que deduzem da imanência vital: as fórmulas religiosas, para que realmente sejam tais e não só meras especulações da inteligência, precisam ser vitais e viver da mesma vida do sentimento religioso… Procede daí que tais fórmulas, para serem vitais, hão de ser e permanecer adaptadas tanto à fé quanto ao crente. Pelo que, se por qualquer motivo cessar essa adaptação, perdem sua primitiva significação e devem ser mudadas” (Pascendi, §13). Eis o julgamento de São Pio X sobre a evolução da verdade, que deve ser aplicado também à presente encíclica: “Deliram a ponto de perverter o eterno conceito de verdade e o verdadeiro significado da religião” (ibid.).
GLOBALIZAÇÃO
A novidade desta encíclica e seu principal foco prático é sem dúvida a globalização, definida como “a explosão da interdependência mundial” (§33). Em si mesmo, esse fenômeno é descrito pelo Papa como “nem bom nem mau” (§42). Todavia, ele nos encoraja a vê-lo como não somente um processo econômico predeterminado, mas antes a vê-lo num sentido positivo: “Não devemos ser vítimas dela, mas protagonistas” (ibid.). A gente pode se perguntar como é que essa dissolução de fronteiras, essa formação de um maçônico sistema governamental e econômico único, como é que essa destruição do que resta da Cristandade, com sua identidade religiosa e cultural, separada e distinta do paganismo e das religiões falsas, poderia de algum modo ser vista num sentido positivo. A resposta é que, se for abraçada num sentido humanista, essa globalização é uma oportunidade real para o diálogo necessário para o desenvolvimento humano integral, para a caridade na verdade. A globalização é, portanto, verdade: “A verdade da globalização enquanto processo e o seu critério ético fundamental provêm da unidade da família humana e do seu desenvolvimento no bem. Por isso é preciso um empenho sustentado para promover uma orientação cultural personalista e comunitária do processo de integração mundial que seja aberta à transcendência” (ibid.).
A globalização da humanidade é, consequentemente, necessária e boa, algo a “direcionar” e não condenar, desde que esteja centrada na pessoa humana e em sua comunidade, e permita alguma abertura a Deus pela liberdade religiosa. Daí a preocupação da encíclica com a ética da ecologia e o meio ambiente, o uso da energia e o crescimento populacional, a pobreza e o consumismo, a ajuda internacional e o turismo, a democracia e a liberdade religiosa.
DIÁLOGO = DESENVOLVIMENTO HUMANO
No entanto, acima de todas essas considerações está a irmandade universal da humanidade, por conta da qual o homem atingirá seu desenvolvimento humano somente na medida em que ele se relacionar com outros homens diversos. A religião é essencial para tornar conhecida ao homem essa realidade de as relações com os outros serem ao mesmo tempo aquilo que é mais humano nele e aquilo que é transcendente. Todas as religiões fazem isso, mas o cristianismo o faz particularmente bem, por conta de seu foco no amor. Aqui está o texto que a princípio pode parecer obscuro, mas, dado o que passou antes, é na realidade muito claro: “A revelação cristã da unidade do gênero humano pressupõe uma interpretação metafísica do ‘humanum’ na qual a relação seja elemento essencial. Também outras culturas e outras religiões ensinam a fraternidade e a paz, revestindo-se, por isso, de enorme importância para um desenvolvimento humano integral” (§ 55).
Claro que a única revelação cristã que diz respeito à unidade da raça humana é a universalidade do pecado original, suas feridas, e a tríplice concupiscência que dele deriva. Assim também, a natureza humana não é definida de jeito nenhum por relações com outros, mas, sim, por ter um corpo e uma alma imortal capaz de conhecer e amar a Deus, tal como Ele revelou a Si próprio pela Encarnação, e de condenação eterna pela recusa dessa revelação.
Note-se que em todo esse contexto naturalista, o “desenvolvimento humano integral”, que consiste no diálogo com os outros, substituiu a salvação eterna como o objetivo da religião. Quase não espanta que o mesmo parágrafo (55) condene “algumas tradições religiosas e culturais … que ossificam a sociedade em agrupamentos sociais rígidos”, e na mesma linha condene “o fundamentalismo religioso”, não porque é doutrinalmente falso, mas porque “impede o encontro entre as pessoas e a sua colaboração para o progresso da humanidade” (§ 56). Claramente, ele manifesta a intenção de incluir nesta condenação o catolicismo tradicional, com sua separação do espírito do mundo e recusa de dialogar com o erro, a heresia e o paganismo. Se prova ulterior disso fosse ainda necessária, ela se encontra imediatamente em seguida. Depois de declarar que a “razão tem sempre necessidade de ser purificada pela fé”—o que é certamente verdade, pois, sem a verdadeira Fé, a razão costumeiramente cai em erro—, ele prossegue traçando o seguinte paralelo horrendo e chocante: “A religião, por sua vez, precisa sempre ser purificada pela razão, para mostrar o seu rosto autenticamente humano. Qualquer ruptura deste diálogo implica um custo muito gravoso para o desenvolvimento da humanidade” (§ 56). Para nós, é inconcebível e blasfemo afirmar que a verdade divina da religião revelada pode ser corrigida pela falível razão humana. Mas se a verdade é diálogo e a religião não é senão um meio para o desenvolvimento humano integral, então a conclusão se segue logicamente. Mas onde isso deixa a verdadeira Fé e a religião católica? Como uma entre muitas opiniões pessoais.
Sigamos a lógica do Papa um passo adiante. O resultado final da redefinição da fé como diálogo e de religião como desenvolvimento humano é o culto do homem, que se torna ele próprio a finalidade última da fé e razão, da “caridade” e religião. Conseqüentemente, todos aqueles que trabalham pelo bem do homem estão a “corresponder ao projeto divino”, sejam eles crentes ou não! “O diálogo fecundo entre fé e razão … constitui o quadro mais apropriado para incentivar a colaboração fraterna entre crentes e não-crentes em seu compartilhado comprometimento para com a justiça e a paz da humanidade. …Daqui nasce o dever que os crentes têm de unir os seus esforços com todos os homens e mulheres de boa vontade (Se eles estivessem de boa vontade, por que recusam crer na revelação divina?), seguidores de outras religiões e não-crentes, para que este nosso mundo possa efetivamente corresponder ao projeto divino” (§ 57).
Destarte, a moralidade da ajuda internacional não se dá só por ser uma obra de misericórdia corporal, mas porque “oferece uma grande oportunidade para o encontro entre as culturas e os povos” (§ 59). Assim também, a do turismo internacional “capaz de promover verdadeiro conhecimento recíproco… Este gênero de turismo precisa aumentar” (§ 61).
GOVERNO MUNDIAL ÚNICO
A conclusão mais chocante e de mais longo alcance dessa promoção positiva da globalização, em nível humano e cultural ao mesmo tempo que econômico, é o pedido de uma autoridade internacional para a impor legalmente, para fazer valer de modo obrigatório o diálogo entre as economias, culturas, religiões e povos tal como promovido por esse humanismo integral. O Papa de fato pede “uma reforma da Organização das Nações Unidas, bem como das instituições econômicas e da finança internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações…, um ordenamento político, jurídico e econômico que incremente e guie a colaboração internacional para o desenvolvimento solidário de todos os povos… urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial… [que] deverá gozar de poder efetivo para garantir a todos a segurança…” (§ 67). Isso significa a perda da soberania nacional e de qualquer possibilidade de união entre a Igreja e o Estado. Isso significa o estabelecimento da ordem mundial única que a Maçonaria vem lutando há tanto tempo para alcançar. O Papa Leão XIII descreveu e condenou muito claramente o “propósito último” da Maçonaria, “especificamente, a completa derrubada de toda a ordem religiosa e política do mundo que o ensinamento cristão produziu, e a substituição por um novo estado de coisas de acordo com as suas ideias, das quais as fundações e leis devem ser obtidas do mero naturalismo.” (Humanum genus, §10).
A justificativa religiosa para uma nova ordem mundial, baseada na dignidade humana, fraternidade e igualdade, e levada a cabo pela democracia universal, claro que não é nova. Foi precisamente o sonho humanitário do movimento Sillon, condenado por São Pio X em 1910, por abraçar os princípios da Revolução Francesa.
“Tememos que ainda haja pior: o resultado desta promiscuidade (entenda-se: diálogo) em curso, o beneficiário desta ação social cosmopolita só poderá ser uma democracia que não será nem católica, nem protestante, nem judaica; será uma religião … mais universal do que a Igreja Católica, unindo todos os homens para tornarem-se enfim irmãos e camaradas no ‘Reino de Deus’. – ‘Não trabalhamos pela Igreja, trabalhamos pela humanidade.’ …Perguntamo-Nos, Veneráveis Irmãos, onde foi parar o catolicismo do Sillon? ….já não é mais do que um miserável afluente do grande movimento de apostasia organizada, em todos os países, para o estabelecimento de uma Igreja mundial que não terá nem dogmas, nem hierarquia, nem regra para o espírito, nem freio para as paixões, e que sob o pretexto de liberdade e de dignidade humana, restauraria no mundo … o reino da fraude e da violência legalizadas” (Notre Charge Apostolique, § 40).
Pode nosso julgamento do autoproclamado humanismo do Papa Bento XVI ser diferente? Se ao menos o pudesse. Se ao menos o humanismo dele que não exclui Deus pudesse ter menos de humanismo e mais de uma verdadeira religião centrada em Deus. Porém, não é esse o caso. Se por um lado o Papa condena um “humanismo que exclui Deus [como] … um humanismo desumano” (§ 78), por outro, o seu “humanismo aberto ao Absoluto” é um humanismo humano: isto é, uma filosofia de como o homem pode desenvolver o pleno potencial de sua natureza humana sem a ordem sobrenatural da revelação, graça, obediência e submissão à autoridade. É por essa razão que uma má consciência não é definida como aquela que recusa discernir a vontade de Deus e admitir a culpa por desobedecê-la. Ela é, ao invés disso, “uma consciência já incapaz de reconhecer o humano” (§ 75), consequência bem lógica para quem acredita que a revelação é quando “Deus revela o homem ao homem” (ibid.).
Não podemos deixar de nos perguntar se o Papa Leão XIII teria tido alguma premonição desta época quando escreveu, na versão original de sua prece de exorcismo a São Miguel Arcanjo: “Onde a Sé do Bem-aventurado Pedro e a Cátedra da Verdade foram estabelecidas para ser luz das nações, ali puseram eles o trono da abominação de sua impiedade, para que, uma vez golpeado o Pastor, pudessem também dispersar o rebanho. Portanto, ó vós, imbatível Líder, estai presente com o povo de Deus contra as impiedades espirituais que o atacam; e trazei a ele a vitória.”
Seguramente a oração e a penitência, o amor da Cruz e do sacrifício, o Rosário e os Sacramentos, verdadeiros meios sobrenaturais que são, são a única resposta possível a um tal manifesto público de humanismo, a uma tal aplicação radical dos princípios do igualitarismo e da fraternidade a ponto de fazer a verdade excluir a posse pessoal e particular da verdade, a ponto de fazer a caridade incluir necessariamente a expressão autêntica da humanidade e a irmandade universal do homem.
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PARA CITAR ESTA TRADUÇÃO:
Pe. Peter R. SCOTT, da FSSPX, MANIFESTO HUMANISTA – Um comentário à encíclica Caritas in veritate, trad. br. por F. Coelho, São Paulo, julho de 2009, http://AciesOrdinata.wordpress.com/
FONTE DO ORIGINAL INGLÊS:
“HUMANIST MANIFESTO – A commentary on the encyclical Caritas in veritate”, http://angelqueen.org/forum/viewtopic.php?t=27026
Um comentário:
Muito prezado Professor, Ave Maria Puríssima!
É uma honra ter uma de minhas traduções apressadas publicadas no blog do senhor.
Esta encíclica conseguiu a proeza de ser contestada até pelo Pe. Tanoüarn, do IBP, que chegou a fazer um parêntese em sua campanha de crítica destrutiva da FSSPX, para fazer o seguinte comentário surpreendente, que corrobora num ponto importante a análise do Pe. Scott:
“Para mim, o problema na encíclica [Caritas in veritate, de B16]... é dizer que a unidade espiritual mundial é um dado da Revelação ("a revelação cristã da unidade do gênero humano" n.º 55 in init.). Aí me parece que há um ensinamento que não é o de B. XVI [somente], mas antes o do Vaticano II (LG 1), que representa verdadeiramente um problema para a consciência e para a tradição cristã. Não falo, é claro, da unidade essencial do gênero humano, em razão de sermos todos descendentes de Adão. Somente certos biólogos malucos sustentam hoje a ideia de que as raças humanas corresponderiam a graus desiguais de hominização. Não é essa unidade essencial que ponho em questão. Mas, em nome da liberdade de cada pessoa, falo da unidade de que se trata nesse texto, a unidade espiritual do gênero humano. [...] É nesse ponto totalmente teológico e não político, saído do concílio Vaticano II, que residiria a discussão mais crítica [offensive (!)], concernente a esta encíclica social. Já tratei dessa questão, como uma das principais dificuldades teológicas do Concílio, em meu livro O Vaticano II e o Evangelho [*]. Recordo-me de uma discussão com o padre Bonino, diretor da Revue thomiste, que não logrou esclarecer a minha lanterna. Bento XVI, que é tão frequentemente repreendido por pessimismo, e que tira da unidade espiritual do gênero humano todo o seu otimismo, certamente deve ter uma resposta. Com a palavra aqueles que conhecem bem a obra dele.”
(Pe. Guillaume de TANOÜARN, IBP, A ideia de um governo mundial em Bento XVI (excerto do final), 10 de julho de 2009, http://leforumcatholique.org/message.php?num=494086 ; trad. F.C.)
(*) Este livro, depois de esgotado, foi posto inteiro online em: http://www.vatican2.free.fr/ ; gostaria de poder traduzi-lo integralmente, pois é muitíssimo interessante!; a questão em pauta é tratada aí longamente, em mais de um capítulo e com uma porção de outras referências a textos do Vaticano II, analisadas com alguma minúcia, apesar do estilo sermonístico da obra; limito-me aqui ao seguinte excerto pertinente, de um dos apêndices, que reproduz um documento de síntese famoso, feito pela FSSPX, da religião conciliar, documento que o Pe. Tanoüarn ajudou a redigir e cuja inclusão, no fim do livro, mostra adesão a ele:
“Devemos assinalar que a "unidade do gênero humano" [Lumen Gentium, 1] não é uma idéia cristã (p. ex. Jo V,28-29) mas um esquema gnóstico que se encontra na tradição maçônica (discurso de Ramsay, 1737) e que o Pe. Teilhard de Chardin usou como objeto teológico antes do concílio.”
(http://www.vatican2.free.fr/3030.htm)
[cf. trad. port. deste importante documento inteiro em:
http://www.capela.org.br/Crise/Vaticano2/comis final.htm]
Sempre Teilhard! ...o qual acaba de ser referendado por Bento XVI em Aosta, e justo numa questão afim: a unidade da humanidade e do universo, como evoluindo todos juntos (interpreto eu) para se tornar uma “hóstia viva” (panCristismo), a Igreja “corpo 'físico' de Cristo” (tese condenada na Mystici Corporis) que vai englobando toda a humanidade e mesmo o cosmos, numa “liturgia cósmica”: seria essa “a resposta. Com a palavra aqueles que conhecem bem a obra dele [Ratzinger]” que pede o pe. Tanoüarn?
Qualquer que seja nossa posição nessa crise inaudita, penso que vivemos tempos apocalípticos, caro Professor...
Todos ao Rosário!
Um abraço,
Em JMJ,
Felipe Coelho
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