18/05/2008

Diário de um Pároco de Aldeia, de Georges Bernanos

Seguem abaixo trechos do célebre livro de Bernanos. São meus trechos preferidos, dessa obra prima do grande católico francês. Tiro-os da 2ª edição da Paulus, 2000.


Os padres

Antigamente, por exemplo, a tradição prescrevia que um discurso episcopal nunca devia se encerrar sem uma prudente alusão – convicta, é claro, mas prudente – à perseguição próxima e ao sangue dos mártires. Hoje em dia, essas predições vão se tornando cada vez mais raras. Provavelmente, porque sua realização parece menos incerta.

... mas confesso que padre letrado sempre me causou horror.

O padre medíocre é feio.

Os pobres e os ricos

... são Paulo não se iludia. A abolição da escravatura não suprimiria a exploração do homem pelo homem. (...) Dizia apenas que o cristianismo havia trazido ao mundo uma verdade que nada poderia fazer cessar, porque se encontrava previamente no âmago das consciências e porque nela o homem se reconhece imediatamente: Deus salvou cada um de nós e cada um de nós vale o sangue de Deus.

A idéia deles é boba. Naturalmente, trata-se ainda de exterminar o pobre – o pobre é testemunha de Jesus Cristo, é herdeiro do povo judeu, ora! – mas ao invés de destruí-lo como gado, o matá-lo, imaginaram transformá-lo numa pessoa que vive de rendas, num aposentado.

Haverá sempre pobre entre vós, pela mesma razão porque haverá sempre ricos, isto é, homens ávidos e duros, que procuram menos as posses do que o poder. Homens como estes existem entre os pobres como entre os ricos, e o miserável que vai curar sua bebedeira à beira do rio talvez tenha os mesmos sonhos que César, adormecido sob suas cortinas de púrpura. Ricos ou pobres, olhai-vos de preferência na pobreza, como diante de um espelho, pois ele é a imagem de vossa decepção fundamental, ela traz para este mundo o lugar do paraíso perdido, ele é o vazio de vossos corações, de vossas mãos. Somente a coloquei tão alto, a coroei, a desposei, porque conheço vossa malícia. Se eu tivesse permitido que vós a considerásseis vossa inimiga, ou apenas como estrangeira, se eu vos tivesse deixado a esperança de expulsá-la um dia do mundo, teria com o mesmo ato condenado os fracos. (...) Pus meu sinal sobre a fronte deles ...

Um problema insolúvel: restabelecer os direitos do pobre, sem estabelecê-lo no poder. (...) Uns vivem da idiotice de outrem, de sua vaidade, de seus vícios. O pobre, por sua vez, vive de caridade. Que expressão sublime.

A divisão de ricos e pobres deve responder a uma grande lei universal. Um rico, aos olhos da Igreja, é protetor do pobre, seu irmão mais velho, ora! Veja que, com freqüência, ele é esse irmão mais velho a contragosto, pelo simples jogo das forças econômicas, como eles dizem. Um multimilionário que quebra, e lá se vão milhares de pessoas para o olho da rua. Podemos então imaginar o que acontece no mundo invisível quando tropeça um desses ricos de quem estou falando, um intendente das graças de Deus.

Nós, diante do Senhor

Mas qual é o peso de nossas chances, para nós que aceitamos, de uma vez por todas, a assustadora presença do divino em cada instante de nossas pobres vidas?

... a pureza não nos é prescrita como um castigo, ela é uma das condições misteriosas mais evidentes – a experiência o atesta – deste conhecimento sobrenatural de si mesmo, de si mesmo em Deus, que se chama fé. A impureza não destrói esse conhecimento, aniquila a necessidade dele.

E o imprevisível nunca é negligenciável. Estarei ali onde nosso Senhor quer que eu esteja? Pergunta que me faço vinte vezes por dia. Pois o mestre que servimos não somente julga as nossas vidas – ele compartilha delas, e as assume. Teríamos muito menos dificuldade para contentar um Deus geômetra e moralista.

Eis-me despojado, Senhor, como somente vós sabeis despojar, pois nada escapa à vossa temível solicitude, ao vosso temível amor.

Acredito nisso, senhora. Creio que se Deus nos desse idéia clara da solidariedade que nos une uns aos outros, no bem como no mal, de fato não poderíamos mais viver.

O que posso lhe afirmar, apesar de tudo, é que não há um reino dos vivos e um reino dos mortos, somente existe o reino de Deus, e todos, vivos ou mortos, estamos dentro dele.

O demônio

E o demônio da angústia é essencialmente, creio, um demônio impuro.

O demônio da luxúria é um demônio mudo.

Pois Satã é um amo muito rígido: ele não ordenaria, como o Outro, com sua simplicidade divina: “Imitem-me!” Ele não suporta que suas vítimas se assemelhem a ele, permite-lhes apenas uma caricatura grosseira, impotente, com a qual deve se deliciar, sem jamais se saciar, a feroz ironia do abismo.

Os pecados

O pecado contra a esperança! O mais mortal de todos e talvez o mais bem recebido, o mais acariciado. É necessário muito tempo para reconhecê-lo, e a tristeza que o anuncia, o precede, é tão doce! É o mais rico dos elixires do demônio, a sua ambrosia.

Confundir a luxúria própria do homem, e o desejo que aproxima os sexos, é o mesmo que dar o mesmo nome ao tumor e ao órgão que ele devora, e cujo aspecto às vezes suas deformidade reproduz de maneira assustadora. (...) Como não imaginam com mais freqüência que a máscara do prazer, despojada de toda hipocrisia, é justamente a máscara da angústia?

A alegria

Veja, vou lhe definir um povo cristão pelo seu contrário. O contrário de um povo cristão é um povo triste, um povo de velhos. (...) É do sentimento de sua própria impotência que a criança tira humildemente o princípio da sua alegria. (...) Se nos tivessem deixado fazer o que queríamos, a Igreja teria dado aos homens esta espécie de segurança soberana. (...) Fora da Igreja, um povo é sempre um povo de bastardos, um povo de crianças abandonadas. Evidentemente, resta-lhes ainda a esperança de se fazer reconhecer por satã. (...) Ora, a Igreja foi encarregada por Deus de manter no mundo o espírito da infância, a ingenuidade, este frescor. (...) A Igreja dispõe da alegria, de toda a alegria reservada a este nosso triste mundo.

A Virgem Maria

O olhar da Virgem é o único olhar verdadeiramente infantil, o único olhar de criança que jamais foi erguido sobre nossa vergonha e nossa infelicidade. Sim, meu filho, para bem rezar a ela, é preciso sentir sobre si esse olhar que não é inteiramente o olhar de indulgência – pois a indulgência não existe sem alguma experiência amarga – mas o da terna compaixão, da surpresa dolorosa, de não se sabe ainda qual sentimento, inconcebível, inexprimível, que a torna mais jovem do que o pecado, mais jovem do que a raça da qual provém, e que ela, apesar de mãe pela graça, mãe das graças, é a caçula do gênero humano.

A verdadeira humildade

Odiar a si mesmo é mais fácil do que se pensa. A graça está em se esquecer. Mas se todo orgulho estivesse morto em nós, a graça das graças seria amar-se humildemente a si mesmo, como qualquer um dos membros sofridos de Jesus Cristo.

Nossa condição de seres caídos

Acredito cada vez mais que aquilo que chamamos de tristeza, angústia, desespero, como que para nos persuadir que se trata de certos movimentos da alma, é a própria alma; que, desde a queda, a condição do homem é tal que nada poderá perceber, dentro como fora dele, a não ser sob a forma da angústia. (...) Se não fosse a vigilante piedade de Deus, me parece que na primeira tomada de consciência que tivesse de si mesmo, o homem se tornaria novamente pó.

Trabalhe, disse-me ele, faça pequenas tarefas, dia após dia. (...) É assim que o bom Deus espera nos ver, quando nos abandona às nossas próprias forças. As pequenas tarefas não parecem importantes, mas dão paz. São como as flores do campo, você sabe. Achamos que não têm perfume, mas, quando juntas, rescendem. A oração das pequenas coisas é inocente.

... a forma carnal da esperança, acho que é isso que chamam felicidade.

O inferno

Julgamos o inferno a partir das máximas deste mundo, e o inferno não é deste mundo. Ele não pertence a este mundo, nem tampouco ao mundo cristão. Um castigo eterno, uma expiação eterna – o milagre está em termos essa idéia aqui na terra, ao passo que, a falta, assim que parte de nós, basta um olhar, um sinal, um apelo mudo, para que o perdão mergulhe sobre ela, do alto dos céus, como uma águia. (...) O inferno, senhora, é não se amar mais. (...) Não amar mais, não compreender mais, e ainda assim viver, que prodigioso milagre! O erro comum a todos está em atribuir ainda a essas criaturas abandonadas alguma coisa de nós, de nossa perpétua mobilidade, enquanto que elas estão fora do tempo, fora do movimento, fixadas para sempre. (...) A infelicidade, a infelicidade terrível daquelas pedras em brasa que foram homens, é que elas nada mais têm a compartilhar.

Economia e política

Admiro os revolucionários que se dão a tanto trabalho para explodir muralhas com dinamite, enquanto o molho de chaves das pessoas bem-pensantes lhes teria permitido entrar tranqüilamente pela porta, se acordar ninguém.

... com aquela seriedade fúnebre, com aquele ar de segurança desconfiada que o privilégio do dinheiro dá aos mais ínfimos burgueses.

... o Estado começou a fazer das tripas coração. Cuida dos seus filhos, cura as suas feridas, lava a roupa, faz a sopa dos pobres, limpa a escarradeira dos caquéticos, mas olha para o relógio, imaginando se sobrará tempo para cuidar de seus próprios negócios.

Pegaria desde logo um daqueles “militantes”, aqueles mercadores de frases, artesãos de revoluções ...

Assim é que a famosa encíclica de Leão XIII, Rerum Novarum, vocês lêem tranqüilamente, com olhos indiferentes como um mandamento qualquer de quaresma. Na época, meu filho, achávamos que a terra tremia sob nossos pés. Que entusiasmo! Naquele tempo, eu era pároco de Norenfonte, em plena região mineira. Aquela idéia tão simples de que o trabalho não é mercadoria, submetida à lei da oferta e da procura, que não se pode especular sobre salários, sobre a vida dos homens, da mesma forma que sobre o trigo, o açúcar e o café, ela revolvia as consciências, você acredita?

Em suma, nosso Senhor conhecia muito bem o poder do dinheiro, abriu perto de si pequeno espaço para o capitalismo, deu-lhe a sua oportunidade, e até mesmo fez o primeiro depósito: acho isso prodigioso.

A mídia

O Verbo se fez carne, e os jornalistas daqueles tempos não souberam de nada!

A Idade Média

... a Idade Média compreendeu tudo.

Lutero

... foi naquele tempo que compreendi Lutero. (...) ... o velho Lutero acabou tendo que carregar feno para a manjedoura dos príncipes alemães, uma bela turma ... (...) Ainda que a princípio justa, pouco a pouco sua ira o havia envenenado: virou gordura ruim, eis tudo.



6 comentários:

Unknown disse...

Bernanos... Um grande homem. Uma sensibilidade incrível.
Sinto-me honrada por ser Diretora do Museu Gorges Bernanos em Barcena.MG

Anônimo disse...

Meu caro Antonio Araújo,
Muito bom encontrar suas transcrições dos textos de G. Bernanos.
Na verdade, o grande amigo francês do Brasil (na literatura) é também o grande esquecido neste Ano da França no Brasil.
Estamos procurando divulgar em grupos e em blogs a obra de Bernanos de modo a chamar a atenção para o Museu Bernanos e incluir seu nome nas comemorações deste ano.
Em meu blog, tenho sempre que possível feito um post em memória de Georges, divulgando sua obra inesquecível e única na história dos escritores católicos.
Mes amitiés,
BetoQ.

Eliabeth disse...

Alguém, por gentileza, poderia indicar onde encontrar o livro : diário de um pároco de aldeia? Já procurei em diversas livrarias, aqui de São Paulo, e me informaram que está fora de catálogo.
Obrigada
Elizabeth

Antônio Emílio Angueth de Araújo disse...

Cara Elizabeth,

Veja aqui: Diário de um pároco de aldeia.

arlete disse...

Eliabeth, a Livraria Paulus reeditou esse livro e vc poderá encontrá-lo em qualquer delas.

André Gomes Quirino disse...

Georges Bernanos, autor de clássicos como “Diário de um Pároco de Aldeia” (“Journal d’um Curé de Campagne”), tem sido publicado no Brasil pela É Realizações Editora, e agora tem também sua passagem pelo país narrada ao público local. O estudo de Sébastien Lapaque “Sob o Sol do Exílio: Georges Bernanos no Brasil (1938-1945)” acaba de ser publicado, trazendo à luz a visita de Bernanos a várias cidade do Rio de Janeiro e Minas Gerais, sua estadia no sítio Cruz das Almas, sua revolta contra a mediocridade dos intelectuais e a ascensão do totalitarismo, sua amizade com pensadores brasileiros e a visita que Stefan Zweig lhe fez à véspera de se suicidar.

Matérias na Folha de S. Paulo a propósito do lançamento do livro: http://goo.gl/O8iFve e http://goo.gl/ymS4lL
Para ler algumas páginas de “Sob o Sol do Exílio”: http://goo.gl/6hAEOM

Confira também:
Diálogos das Carmelitas: http://goo.gl/Yy3ir3
Joana, Relapsa e Santa: http://goo.gl/CAzTTk
Um Sonho Ruim: http://goo.gl/Kd091z
Diário de um Pároco de Aldeia: http://goo.gl/ISErLc
Sob o Sol de Satã: http://goo.gl/qo18Uu
Nova História de Mouchette: http://goo.gl/BjXsgm


ANDRÉ GOMES QUIRINO
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