18/05/2008

Diário de um Pároco de Aldeia, de Georges Bernanos

Seguem abaixo trechos do célebre livro de Bernanos. São meus trechos preferidos, dessa obra prima do grande católico francês. Tiro-os da 2ª edição da Paulus, 2000.


Os padres

Antigamente, por exemplo, a tradição prescrevia que um discurso episcopal nunca devia se encerrar sem uma prudente alusão – convicta, é claro, mas prudente – à perseguição próxima e ao sangue dos mártires. Hoje em dia, essas predições vão se tornando cada vez mais raras. Provavelmente, porque sua realização parece menos incerta.

... mas confesso que padre letrado sempre me causou horror.

O padre medíocre é feio.

Os pobres e os ricos

... são Paulo não se iludia. A abolição da escravatura não suprimiria a exploração do homem pelo homem. (...) Dizia apenas que o cristianismo havia trazido ao mundo uma verdade que nada poderia fazer cessar, porque se encontrava previamente no âmago das consciências e porque nela o homem se reconhece imediatamente: Deus salvou cada um de nós e cada um de nós vale o sangue de Deus.

A idéia deles é boba. Naturalmente, trata-se ainda de exterminar o pobre – o pobre é testemunha de Jesus Cristo, é herdeiro do povo judeu, ora! – mas ao invés de destruí-lo como gado, o matá-lo, imaginaram transformá-lo numa pessoa que vive de rendas, num aposentado.

Haverá sempre pobre entre vós, pela mesma razão porque haverá sempre ricos, isto é, homens ávidos e duros, que procuram menos as posses do que o poder. Homens como estes existem entre os pobres como entre os ricos, e o miserável que vai curar sua bebedeira à beira do rio talvez tenha os mesmos sonhos que César, adormecido sob suas cortinas de púrpura. Ricos ou pobres, olhai-vos de preferência na pobreza, como diante de um espelho, pois ele é a imagem de vossa decepção fundamental, ela traz para este mundo o lugar do paraíso perdido, ele é o vazio de vossos corações, de vossas mãos. Somente a coloquei tão alto, a coroei, a desposei, porque conheço vossa malícia. Se eu tivesse permitido que vós a considerásseis vossa inimiga, ou apenas como estrangeira, se eu vos tivesse deixado a esperança de expulsá-la um dia do mundo, teria com o mesmo ato condenado os fracos. (...) Pus meu sinal sobre a fronte deles ...

Um problema insolúvel: restabelecer os direitos do pobre, sem estabelecê-lo no poder. (...) Uns vivem da idiotice de outrem, de sua vaidade, de seus vícios. O pobre, por sua vez, vive de caridade. Que expressão sublime.

A divisão de ricos e pobres deve responder a uma grande lei universal. Um rico, aos olhos da Igreja, é protetor do pobre, seu irmão mais velho, ora! Veja que, com freqüência, ele é esse irmão mais velho a contragosto, pelo simples jogo das forças econômicas, como eles dizem. Um multimilionário que quebra, e lá se vão milhares de pessoas para o olho da rua. Podemos então imaginar o que acontece no mundo invisível quando tropeça um desses ricos de quem estou falando, um intendente das graças de Deus.

Nós, diante do Senhor

Mas qual é o peso de nossas chances, para nós que aceitamos, de uma vez por todas, a assustadora presença do divino em cada instante de nossas pobres vidas?

... a pureza não nos é prescrita como um castigo, ela é uma das condições misteriosas mais evidentes – a experiência o atesta – deste conhecimento sobrenatural de si mesmo, de si mesmo em Deus, que se chama fé. A impureza não destrói esse conhecimento, aniquila a necessidade dele.

E o imprevisível nunca é negligenciável. Estarei ali onde nosso Senhor quer que eu esteja? Pergunta que me faço vinte vezes por dia. Pois o mestre que servimos não somente julga as nossas vidas – ele compartilha delas, e as assume. Teríamos muito menos dificuldade para contentar um Deus geômetra e moralista.

Eis-me despojado, Senhor, como somente vós sabeis despojar, pois nada escapa à vossa temível solicitude, ao vosso temível amor.

Acredito nisso, senhora. Creio que se Deus nos desse idéia clara da solidariedade que nos une uns aos outros, no bem como no mal, de fato não poderíamos mais viver.

O que posso lhe afirmar, apesar de tudo, é que não há um reino dos vivos e um reino dos mortos, somente existe o reino de Deus, e todos, vivos ou mortos, estamos dentro dele.

O demônio

E o demônio da angústia é essencialmente, creio, um demônio impuro.

O demônio da luxúria é um demônio mudo.

Pois Satã é um amo muito rígido: ele não ordenaria, como o Outro, com sua simplicidade divina: “Imitem-me!” Ele não suporta que suas vítimas se assemelhem a ele, permite-lhes apenas uma caricatura grosseira, impotente, com a qual deve se deliciar, sem jamais se saciar, a feroz ironia do abismo.

Os pecados

O pecado contra a esperança! O mais mortal de todos e talvez o mais bem recebido, o mais acariciado. É necessário muito tempo para reconhecê-lo, e a tristeza que o anuncia, o precede, é tão doce! É o mais rico dos elixires do demônio, a sua ambrosia.

Confundir a luxúria própria do homem, e o desejo que aproxima os sexos, é o mesmo que dar o mesmo nome ao tumor e ao órgão que ele devora, e cujo aspecto às vezes suas deformidade reproduz de maneira assustadora. (...) Como não imaginam com mais freqüência que a máscara do prazer, despojada de toda hipocrisia, é justamente a máscara da angústia?

A alegria

Veja, vou lhe definir um povo cristão pelo seu contrário. O contrário de um povo cristão é um povo triste, um povo de velhos. (...) É do sentimento de sua própria impotência que a criança tira humildemente o princípio da sua alegria. (...) Se nos tivessem deixado fazer o que queríamos, a Igreja teria dado aos homens esta espécie de segurança soberana. (...) Fora da Igreja, um povo é sempre um povo de bastardos, um povo de crianças abandonadas. Evidentemente, resta-lhes ainda a esperança de se fazer reconhecer por satã. (...) Ora, a Igreja foi encarregada por Deus de manter no mundo o espírito da infância, a ingenuidade, este frescor. (...) A Igreja dispõe da alegria, de toda a alegria reservada a este nosso triste mundo.

A Virgem Maria

O olhar da Virgem é o único olhar verdadeiramente infantil, o único olhar de criança que jamais foi erguido sobre nossa vergonha e nossa infelicidade. Sim, meu filho, para bem rezar a ela, é preciso sentir sobre si esse olhar que não é inteiramente o olhar de indulgência – pois a indulgência não existe sem alguma experiência amarga – mas o da terna compaixão, da surpresa dolorosa, de não se sabe ainda qual sentimento, inconcebível, inexprimível, que a torna mais jovem do que o pecado, mais jovem do que a raça da qual provém, e que ela, apesar de mãe pela graça, mãe das graças, é a caçula do gênero humano.

A verdadeira humildade

Odiar a si mesmo é mais fácil do que se pensa. A graça está em se esquecer. Mas se todo orgulho estivesse morto em nós, a graça das graças seria amar-se humildemente a si mesmo, como qualquer um dos membros sofridos de Jesus Cristo.

Nossa condição de seres caídos

Acredito cada vez mais que aquilo que chamamos de tristeza, angústia, desespero, como que para nos persuadir que se trata de certos movimentos da alma, é a própria alma; que, desde a queda, a condição do homem é tal que nada poderá perceber, dentro como fora dele, a não ser sob a forma da angústia. (...) Se não fosse a vigilante piedade de Deus, me parece que na primeira tomada de consciência que tivesse de si mesmo, o homem se tornaria novamente pó.

Trabalhe, disse-me ele, faça pequenas tarefas, dia após dia. (...) É assim que o bom Deus espera nos ver, quando nos abandona às nossas próprias forças. As pequenas tarefas não parecem importantes, mas dão paz. São como as flores do campo, você sabe. Achamos que não têm perfume, mas, quando juntas, rescendem. A oração das pequenas coisas é inocente.

... a forma carnal da esperança, acho que é isso que chamam felicidade.

O inferno

Julgamos o inferno a partir das máximas deste mundo, e o inferno não é deste mundo. Ele não pertence a este mundo, nem tampouco ao mundo cristão. Um castigo eterno, uma expiação eterna – o milagre está em termos essa idéia aqui na terra, ao passo que, a falta, assim que parte de nós, basta um olhar, um sinal, um apelo mudo, para que o perdão mergulhe sobre ela, do alto dos céus, como uma águia. (...) O inferno, senhora, é não se amar mais. (...) Não amar mais, não compreender mais, e ainda assim viver, que prodigioso milagre! O erro comum a todos está em atribuir ainda a essas criaturas abandonadas alguma coisa de nós, de nossa perpétua mobilidade, enquanto que elas estão fora do tempo, fora do movimento, fixadas para sempre. (...) A infelicidade, a infelicidade terrível daquelas pedras em brasa que foram homens, é que elas nada mais têm a compartilhar.

Economia e política

Admiro os revolucionários que se dão a tanto trabalho para explodir muralhas com dinamite, enquanto o molho de chaves das pessoas bem-pensantes lhes teria permitido entrar tranqüilamente pela porta, se acordar ninguém.

... com aquela seriedade fúnebre, com aquele ar de segurança desconfiada que o privilégio do dinheiro dá aos mais ínfimos burgueses.

... o Estado começou a fazer das tripas coração. Cuida dos seus filhos, cura as suas feridas, lava a roupa, faz a sopa dos pobres, limpa a escarradeira dos caquéticos, mas olha para o relógio, imaginando se sobrará tempo para cuidar de seus próprios negócios.

Pegaria desde logo um daqueles “militantes”, aqueles mercadores de frases, artesãos de revoluções ...

Assim é que a famosa encíclica de Leão XIII, Rerum Novarum, vocês lêem tranqüilamente, com olhos indiferentes como um mandamento qualquer de quaresma. Na época, meu filho, achávamos que a terra tremia sob nossos pés. Que entusiasmo! Naquele tempo, eu era pároco de Norenfonte, em plena região mineira. Aquela idéia tão simples de que o trabalho não é mercadoria, submetida à lei da oferta e da procura, que não se pode especular sobre salários, sobre a vida dos homens, da mesma forma que sobre o trigo, o açúcar e o café, ela revolvia as consciências, você acredita?

Em suma, nosso Senhor conhecia muito bem o poder do dinheiro, abriu perto de si pequeno espaço para o capitalismo, deu-lhe a sua oportunidade, e até mesmo fez o primeiro depósito: acho isso prodigioso.

A mídia

O Verbo se fez carne, e os jornalistas daqueles tempos não souberam de nada!

A Idade Média

... a Idade Média compreendeu tudo.

Lutero

... foi naquele tempo que compreendi Lutero. (...) ... o velho Lutero acabou tendo que carregar feno para a manjedoura dos príncipes alemães, uma bela turma ... (...) Ainda que a princípio justa, pouco a pouco sua ira o havia envenenado: virou gordura ruim, eis tudo.



11/05/2008

Uma aula de Gustavo Corção: Cientificismo, senso comum e a Igreja

Gustavo Corção

Nota do blogueiro: Neste texto excepcional (parte do capítulo III – A revolução se avoluma – do monumental “O Século do Nada”), Gustavo Corção nos ensina o que é cientificismo e quais são suas conseqüências, assunto de uma recente resenha que publiquei neste blog. O texto é longo e demandará muita paciência ao leitor. Talvez nem seja um texto adequado a um blog. Contudo, como o livro de Corção está fora de edição há anos, senão décadas, e é dificílimo de encontrar em sebos, resolvi publicá-lo assim mesmo. Fiz muitas correções de texto e de ortografia no texto original. A edição de que disponho foi muito mal revisada e não faz jus à importância do texto, nem à erudição do autor. Introduzi também algumas observações, nos lugares que considerei conveniente, e as marquei com “N. do B”, nota do blogueiro, para distingui-las das notas do próprio Gustavo Corção. Faço também alguns destaques no texto, colocando-os em negrito. Vamos ao texto!


Com o objetivo de apontar, na bacia hidrográfica a que nos referimos atrás, os principais afluentes que convergem todos na caudalosa Revolução que faz de nosso século um estuário de contestações e recusas, comecemos por este "ismo" que, no livro anteriormente citado (Dois Amores, Duas Cidades, AGIR 1967), foi apontado como uma das primeiras conseqüências da poluição nominalista.[1] Cremos que vale a pena transcrever algumas linhas dessa obra:

Como atrás já dissemos, o termo cientificismo não designa o maior incremento de pesquisas nem o maior ardor de estudo nos domínios das ciências naturais. Tudo isto, em si, é bom. O que não é bom é o estado de espírito que coloca a ciência da natureza na presidência de uma civilização, depois da expulsão da Sabedoria.

Uma vez que a inteligência não alcança as coisas superiores — diz o homem moderno — apliquemo-la no trabalho de apalpar o fenômeno para deles tirar uma nova confiança em nós mesmos, e para ordenhar a nosso gosto a imensa mãe telúrica, brutal, que às vezes, no seu sono pesado, mata os próprios filhos.

Esse estado de espírito nos primeiros tempos produzirá grande euforia. A humanidade, depois de descobrir a pólvora, o movimento dos astros, a força do vapor, o poder mágico da eletricidade, terá, como teve nos séculos XVII, XVIII, XIX,
momentos de inebriado otimismo.

A cândida idéia que logo ocorrerá nos espíritos fracos é a de que, na continuação dos tempos, a Ciência do fenômeno polirá todas as arestas do Velho Homem, iluminará todas as trevas, resolverá todas as dificuldades. Ora, essa idéia, comicamente
falsa, extravagantemente, delirantemente falsa foi difundida e tornou-se o ar que respiramos e a água que bebemos, e isto aconteceu porque a Civilização Ocidental moderna já não tinha à sua presidência os dados da antiga Sabedoria.
Se a tivesse, ouviria a censura clara e irreputável: a ciência dos elementos exteriores dilata o campo do domínio do homem sobre as coisas exteriores e inferiores, mas nada acrescenta ao domínio do homem sobre si mesmo.
Uma civilização ( . . .) não pode ser governada pelas ciências da natureza que é cega, surda e conseqüentemente muda para os problemas mais comuns e mais profundos de nossa vida. Como já disse em outra obra[2], a ciência pode-nos dizer que nossos pulmões estão anormais e devem ser tratados desta ou daquela maneira, mas é inteiramente incapaz de nos dizer, de nos sugerir o que podemos ou devemos fazer de nossos pulmões normais.

Hoje eu não diria que o cientificismo, isto é a falsíssima idéia que espera da ciência inferior solução para os problemas superiores, difundiu-se depois da desmoralização e do destronar da Sabedoria; antes diria que essa tentação foi um dos fatores que contribuiu para a rejeição da Sabedoria. E, assim dizendo, estarei apontando o "cientificismo" (e não a legítima glória das ciências) como um dos fatores do revolucionarismo vacuador da civilização.[3]

O cientificismo e o senso comum [4]

Para entender bem o processo demolidor da subversão cientificista é preciso compreender a imensa significação que teve nesse drama a desmoralização do "senso comum" promovida pelos "intelectuais" a partir do século XVIII sempre em nome da "Ciência". Todo o drama cultural que no século XVIII capitaliza explosivos para a Revolução Francesa começou pelo repúdio do senso comum, que eu chamaria de "pétite sagesse" e que foi a primeira vítima da torrente nominalista que inundou os tempos modernos. E para compreender bem a gravidade e a infinita conseqüência desse processo precisamos saber o que não é, e o que é o "senso comum" neste contexto. Poderia remeter o leitor à citada obra (Dois Amores, Duas Cidades, AGIR, 1967, vol. II p. 57 e seg.) ou recomendar o profundo estudo de R. Garrigou-Lagrange, Le Sens Commun (Desclée de Brouwer, Paris, 1936); mas cremos prestar bom serviço avivando e condensando aqui as noções principais.

De início lembremos que todo o homem já nasce com todos estes dons de sua natureza racional:

a) a alma espiritual ou forma específica pela qual o homem é homem;

b) as potências da alma: a inteligência e a vontade racionais;

c) as inclinações inatas determinadas pelo condicionamento (inclusive o corpóreo e o sensível) que favorecerá ou desfavorecerá a sorte ulterior dos hábitos adquiridos:

d) os primeiros princípios, que são dons de natureza.

A partir desse núcleo essencial começa a história das aquisições intelectuais e morais. O senso comum se situa na zona dos primeiros acervos da razão especulativa e da razão prática, é uma primeira metafísica rudimentar, e uma primeira filosofia moral. Situado entre a cercadura dos primeiros princípios, e a cercadura maior e mais confusa do consabido cultural de cada época, ouso dizer que o senso comum, de importância vital para todo o desenvolvimento ulterior do homem, está muito mais próximo dos primeiros princípios do que do firmamento das coisas sabidas por todos num momento histórico, e portanto participa mais da perenidade da metafísica (digo da reta metafísica) do que da fluência e da mobilidade do consabido que anos atrás ignorava totalmente os raios laser, o código genético, a existência de um planeta transnetuniano e outras coisas desse tipo.

O senso comum é um acervo das primeiras elaborações dos primeiros princípios e poderá ser enriquecido ou deformado pelo envoltório cultural.

Gostaria de me estender longamente sobre a transcendental importância do senso comum tanto na vida temporal, particular ou pública, como na vida da Fé, que se torna dificilmente praticável numa sociedade que perde a docilidade ao real, e o instinto racional quase espontâneo que levaria a razão a bem considerar as coisas se não houvesse perturbações culturais trazidas pela enxurrada da história. Sem o senso comum sadiamente começado e alargado sem estorvos, dificilmente pode o homem começar a fazer filosofia e teologia, dificilmente pode ser vivida a sabedoria. Este é o drama dos tempos modernos, desde a Renascença e a Reforma, que na obra anteriormente citada chamei "civilização do homem exterior". E nesta "civilização", mal nascida de imensos dramas intelectuais, morais e religiosos de toda a Cristandade, e marcada com os sinais genéticos do nominalismo, um dos fatores mais nocivos para o senso comum, e portanto a todo o edifício da civilização e de seu relacionamento com a Igreja, foi o cientificismo. Torno a dizer: não foi em si o progresso da ciência das coisas exteriores e inferiores — a física, a astronomia, etc. — que é razoável e constitui uma glória para o homem, e sim o preço filosófico e religioso que custou esse progresso, por ter sido orgulhosamente armado em forma de rejeição de mais altos graus de saber, isto é, em forma de revolução.

Até hoje a pestilência do cientificismo continua a produzir seus frutos, como se vê no prazer sádico com que um Betrand Russell, sob pretexto de filosofia matemática, tentou desmoralizar o senso comum, e como se vê no próprio nível vulgar da estupidez moderna que é, toda ela, tecida de pedante e asmático cientificismo.

Creio poder afirmar que um dos grandes pioneiros desse espúrio subproduto das ciências foi Galileu — ou mais exatamente — foi o "affaire Galileu" em que o próprio foi um dos agentes, irias não o único. É pena que Jacques Maritain não tenha introduzido este d'Artagnan entre os Três Mosqueteiros da Revolução (Trois Réformateurs) que na verdade foram quatro. Para maior aflição nossa, o grande tomista teve a infelicidade de abordar o caso Galileu pela outra ponta que só vem servir os interesses da grande Rejeição. No seu livro recente, De l’Église du Christ (Desclée de Brouwer, 1970), Maritain aborda o caso mais explorado dos últimos 4 séculos como se estivessem em jogo os direitos da Ciência feridos pelo Santo Ofício, e não como efetivamente estava em jogo a pretensão do "cientificismo" e a injúria feita ao senso comum em nome do "progresso da Ciência"[5].

Em vista do papel de destaque que esse caso desempenhou no afluente revolucionário que nos trouxe a este estuário de erros, não resisto à idéia de inserir, com a maior condensação possível, algumas considerações que, de início, têm o picante do desafio, porque levam a mostrar que, no caso, certo estava o Santo Ofício e errado Galileu. E antes que clamores de asneiras escandalizadas cheguem ao meu tugúrio, apresso-me a explicar o problema em termos de exemplar moderação. E desde logo observo que só entenderá alguma coisa do imbróglio quem tiver, razoavelmente claras, meia dúzia de noções.

Entre essas noções dou lugar de destaque ao "senso comum" que é, por assim dizer, uma primeira trincheira onde temos de defender o humano. Forçado pelo espaço a contentar-me com o que disse no tópico anterior, e na leitura que remeto a Garrigou-Lagrange (Le Sens Commun), passo a ocupar-me da segunda, que diz respeito à estrutura e aos métodos das ciências da natureza: física, química, biologia, astronomia, etc.

O "depósito observado" e as "teorias"

Desde a Idade Média, e principalmente desde Santo Tomás, sabemos que convêm distinguir, no cabedal científico a que damos vários nomes, conforme seus objetos materiais, duas coisas:

a) O acervo dos dados observados e trazidos por observações e experimentações à prova da evidência sensível. Demos a este principal patrimônio, e principal critério das ciências o nome de "dado fenomênico" ou de "fenômenos observados", ou ainda lembremos o nome que lhe davam os escolásticos: "apparentia sensibilia" onde o termo "apparentia" não quer dizer "o que parece ser . . . " e muito menos "o que parece ser, mas não é", e sim "o que é evidente para o conhecimento sensível".

b) A segunda coisa é a síntese interpretativa feita de teorias destinadas a propor uma explicação conexa aos vários elementos dispersos do dado observado.

E aqui cabe um reparo importante: a teoria interpretativa, apesar de seu talhe imponente, é cientificamente sujeita ao observado, aos fenômenos, e só se mantém enquanto suas articulações e a costura de seu tecido de hipóteses explicativas conseguem dar conta dos dados observados. Santo Tomás, na questão relativa à possibilidade de prova metafísica da Trindade (S.T. Prima, Qu.32), chega à conclusão de que seria possível sem a Revelação adivinhar, propor a idéia de um Deus Trino refletido em todas as coisas, mas não é possível prová-lo como provamos a existência de um Ato Puro ou de um Ser A-ser. E então, para ilustrar genialmente com um exemplo astronômico, Santo Tomás diz que é evidentemente provado o movimento dos astros, que naquele tempo se enquadravam para cálculos de eclipses, etc, na teoria dos epiciclos que viera do Almagest de Ptolomeu e durante quatorze séculos conseguiu enquadrar os "dados observados"; mas logo o Doutor Angélico acrescenta com o mais lúcido discernimento científico (além dos outros mais altos) que isto não provava a teoria dos epiciclos, e que amanhã ou depois outra teoria interpretativa poderia dar uma explicação mais simples. O que importava era a salvaguarda de "depósito observado". Digamos como os escolásticos: "opportet salvare apparentia sensibilia".

Dois exemplos de ruptura de uma teoria interpretativa

Há nos tempos modernos dois exemplos curiosos e curiosamente cercados de circunstâncias e ressonâncias diversas. Comecemos pelo segundo: a saturação e os primeiros estalos de uma das teorias interpretativas mais gloriosas da ciência moderna: a da síntese newtoniana. Durante mais de dois séculos o mundo ocidental viveu tão solidamente agarrado à gravitação universal formulada por Newton que muitos, mesmo nos grêmios mais científicos, chegaram a esquecer a essencial distinção, i.e., chegaram a esquecer que a teoria interpretativa pode ter as costuras rompidas pelo advento de um fenômeno observado que nela não consiga encontrar explicação cabal. Tal era a convicção, mais cientificista do que científica, que milhões de pessoas não hesitariam em dizer que estava matematicamente provado que os corpos se atraíam na razão direta das massas etc. etc.

Ora, essa afirmativa era errônea (filosoficamente) porque nada se pode demonstrar matematicamente de coisas físicas. Pode-se observar, pode-se medir, mas essa mesma não é uma operação matemática e sim física.

Hoje sabemos que a grande síntese newtoniana não dava boa conta, por exemplo, do movimento do periélio de Mercúrio, nem conseguia enquadrar bem o eletromagnetismo depois de Maxwell. Por essas e outras e sobretudo depois de Plank e Einstein operou-se uma transformação do sistema de síntese explicativa para cumprir o preceito escolástico: salvaguardar o depósito observado. Não se trata pois de reformar, de revolucionar, e sim de procurar novos meios de sistematização que continuem o acervo adquirido e crescido. Não creio que tenha passado no espírito de Einstein ou de Plank que Newton fosse um trevoso medieval deixado para trás a babar na gravata, ou na gargantilha, que era o que se usava naquele tempo em que também se usava a ação a distância como vitória sobre o aristotelismo.

Aliás, convém lembrar que Netuno, descoberto com cálculos de Lavoisier do mais ortodoxo newtonismo, até a 6ª ou 7ª casa decimal do logaritmo, não tornou a mergulhar no ignoto, nem os eclipses, que ainda se calculam na mesma honrada mecânica celeste, que tão bons serviços prestou, deixam de comparecer, com a prevista pontualidade. Mas o fato incontestável é que a Física newtoniana assim chamada por seu lado hipotético-explicativo, cedeu lugar a uma outra Física que ainda se debate perdida numa excessiva soma de dados que andam à procura de uma nova roupagem.

O segundo exemplo de mudança de teoria interpretativa para mantença do "depósito observado" foi cronologicamente anterior à transmutação Newton-Einstein e ocorreu num clima de euforia já revolucionária. Refiro-me ao "caso Copérnico", que merece um tópico especial, mais por seu alarido do que por seu valor epistemológico.

A "revolução" coperniciana

A contribuição de Copérnico, por causa do ponto histórico em que ocorreu, produziu no mundo um ataque de estupidez que dura até hoje. Até então o sistema de Ptolomeu permitia prever a posição dos astros e o comparecimento dos eclipses, com uma precisão que só dependia do aperfeiçoamento dos aparelhos de medida (isto é, do instrumental de observação física), e todo ele se firmava em referenciais que estavam na Terra e eram tidos por imóveis. Da escolha desse sistema referencial fixado no observador terrestre resultavam os famosos epiciclos para adequada, e tão rigorosa quanto possível, previsão do movimento dos astros. Durante quatorze séculos esse majestoso sistema deu conta dos "dados observados", ou salvou os fenômenos como dizia Santo Tomás. Copérnico fez a experiência placidamente prevista por Santo Tomás; imaginou outra escolha de eixos coordenados com centro no Sol e viu que toda a geometria do movimento se simplificava se colocasse o Sol no centro do sistema planetário e se partisse do puro postulado (sem nenhuma base na observação) de serem circulares os movimentos dos planetas em torno do Sol.

É inegável a intuição que teve Copérnico nessa escolha de novos referenciais, mas há um colossal exagero no valor que passa o mundo inteiro a atribuir-lhe. Na verdade, nem o instrumental matemático possuía esse cientista e foi um matemático alemão Georg Rhéticus (1514-1516) que, ouvindo falar em sua teoria, veio trabalhar dois anos com ele. Com os dados observados retomados no século XV por George Burlach (1423-1461), da Universidade de Viena, e sobretudo por seu discípulo Johannes Miiller (1436-1476), que haviam estudado na Itália as versões gregas do original de Ptolomeu, puderam ambos elaborar a obra principal que Copérnico publica: De revolutionibus orbium coelestium. Morre poucos anos depois (1543) sem ser
incomodado por ninguém e talvez sem imaginar que lançava uma outra revolução diferente do giro circular dos planetas. A chamada revolução coperniciana é realmente uma revolução no sentido que hoje dou a este termo. Sem culpa nenhuma do autor, a mudança de eixos de uma cinemática trouxe fortes abalos culturais, e muita gente sentiu efetivamente um abalo no nível do senso comum, e até hoje as vítimas do cientificismo exageram o feito, ignoram as controvérsias, ignoram que a estrepitosa "revolução coperniciana" nada descobriu na natureza física dos astros, mas pouco mais fez do que rearrumar os eixos de uma geometria do movimento, i.e., de uma cinemática. E sobretudo ignoram que, facilitando embora os cálculos astronômicos de previsão da ascensão reta e da declinação dos planetas, e das datas dos eclipses, o sistema do Copérnico não trazia melhor aproximação do que os cálculos feitos com os epiciclos de Ptolomeu, e até de certo modo se arriscava a trazer erros maiores, porque, enquanto os astrônomos tradicionais se apegavam aos dados observados que extrapolavam, Copérnico apegava-se a priori, e sem base física, à idéia antiqüíssima, pitagórica, de órbitas circulares.
Há, assim, na festejada novidade um divertido anacronismo que vem precisamente do fato de ser mais imaginoso do que cientista o autor de De revolutionibus. . ., e do fato de não ter sido dócil ao observado como ensinava Santo Tomás; "opportet salvare apparentia sensibilia". É curioso notar que o conhecido autor da revolução coperniciana, além de apriorista em matéria física, era rigidamente tradicionalista quando censurava Ptolomeu por ter-se afastado demais de Pitágoras. E eis aqui um divertido paradoxo resultante da mistura do cientificismo com uma espécie de mística, ou de gnose, com a qual Copérnico é ao mesmo tempo o abridor de portas do século XVI e o fiel pitagórico de vinte e dois séculos atrás! Kepler (1571-1630), quando descobrir a forma elíptica das órbitas planetárias e as famosas três leis do movimento planetário, dirá que Copérnico não soube aproveitar a riqueza que tinha nas mãos. Cumpre porém notar que, mesmo depois do apuro trazido pelas leis de Kepler ao movimento dos planetas, aplica-se à astronomia do tempo a mesma queixa formulada por Francis Bacon contra Galileu e Copérnico.

Adversário do método elaborado por Galileu, que consiste em isolar os fenômenos do contexto natural, para estudar somente os aspectos mensuráveis, e para desenvolver depois vastas teorias matemáticas sobre a base dos resultados, Bacon reclama a consideração dos fatos que tenham relação com a matéria tratada: em astronomia, por exemplo, a natureza física dos corpos celestes, que Copérnico desprezava, e a resistência do ar na queda dos corpos, desprezada por Galileu... [6]

Na verdade, a astronomia até Kepler, e antes de Newton, reduz-se a uma cinemática baseada em medidas de ângulos: era uma trigonometria esférica em movimento, com duas dimensões angulares, e uma 3ª dimensão de duração t. Exagerei dizendo em outro lugar[7] que se reduzia a uma cinemática colocada no 2º grau da abstração matemática. Onde há medida experimentalmente feita, com régua e transferidor, por exemplo, já há uma espécie de topografia do espaço físico. O que se pode dizer, sem exagero, é que aquela astronomia era de uma magreza física esquelética que não tinha o direito de passar dos entes de razão, ou da teoria interpretativa para matrícula no acervo fenomênico, a não ser com prova física, isto é, reduzida experimentalmente a uma evidência sensível, a uma "apparentia sensibilia".

Mesmo depois de Newton (1642-1727) é ainda prematuro dizer que está fisicamente provado o movimento de rotação da Terra, e fisicamente justificada a escolha do centro do sistema planetário no astro que condensa a maior massa. É somente depois da medida da constante g de gravitação, realizada em laboratório por Cavendish, (1731-1816), que a chamada lei da gravitação universal pode ser provocada, medida e, assim, enquadrada no acervo fenomênico. Mas ainda é cedo para dizer que está cientificamente provado que o Sol atrai os planetas na razão direta das massas e na inversa do quadrado das distâncias, porque o verbo atrair implica toda uma teoria interpretativa. Na física moderna ainda não se solidificou uma tranqüila teoria da gravitação, mas a tendência parece ser a de procurá-la mais numa "forma" do espaço-tempo em torno de uma massa do que numa ação a distância.

Ainda depois de Kepler, Newton e Cavendish é prematuro falar em prova física do movimento diurno da Terra, que só ingressa no patrimônio do "dado observado" com as experiências do pêndulo de Foucault, na cúpula do Panthéon de Paris, em 1850.

Reflexões sobre ciência autônoma e heterônoma

Apesar do título rebarbativo, o que queremos dizer neste tópico é simples e relevante: sendo as ciências empíricas (a astronomia, a física, a biologia, etc.) compostas de duas partes, um acervo fenomênico ou um "dado observado" de um lado, e uma "teoria interpretativa" de outro, é fácil adivinhar a soma de equívocos que advirá quando tomarmos uma coisa pela outra. E aqui cumpre notar que, embora não pareça, a primeira parte é muito mais inacessível e impopular do que a segunda, porque são poucos os que entram em confronto direto e fraterno com o irmão-fenômeno, e muitos são os que lêem as notícias das sínteses teóricas, quase sempre em formas vulgarizadas e brutalizadas.

Tomemos por exemplo o movimento diurno da Terra.

Muito poucos são os que fizeram ou refizeram a experiência de Foucault, e os que, com o olho colado à ocular do círculo meridiano, puderam verificar com aproximação cada vez maior a uniformidade do movimento angular dos "pontos no infinito" que cruzam os fios do retículo. Todos os outros que falam da rotação da Terra, de oitiva falam. De ouvir dizer e não de coisa vista ou diretamente ouvida. Essa grande e respeitabilíssima maioria dos não-astrônomos, o pouco que sabem de astronomia não o sabem com ciência adequada e autônoma, sabem-no por informação, por fé humana, ou por ciência pobre, inadequada e heterônoma. A mais lúcida inteligência do mundo, digamos por exemplo Jacques Maritain, fala com toda a simplicidade do acerto de Galileu, da mancada do Santo Ofício, sem se dar conta de que a verdade "científica" do movimento da Terra só é por ele conhecida em nível colegial de ciência heterônoma, colada por informação.

Arma-se aqui um problema filosófico interessante e indispensável à compreensão dos equívocos tecidos em torno do "caso Galileu". Será hoje o movimento diurno da Terra um simples dado do consabido, uma ciência realmente heterônoma de pura informação, ou será hoje um dado do senso comum e, portanto, sob certo título, uma ciência muito mais densa do que uma simples informação?

Respondeo dicendum que, nos tempos de Galileu e Copérnico, a rotação da Terra era um dado da teoria interpretativa, sem prova física para os próprios autores e defensores da idéia, que abusavam de seus dons intuitivos, divinatórios, ou de suas faculdades oníricas quando a apresentavam como fisicamente provada. Galileu chegou a dizer, sem direito de fazê-lo, que sentia-o (o movimento da Terra) como se o tocasse com as mãos. O glorioso florentino, nesse passo, abusava de seus talentos e cometia fraude epistemológica. E aqui não me venham dizer — pelo amor de Deus e das verdades menores — que o futuro deu razão a Galileu e provou que era verdade o que afirmava, porque a honra e dignidade do cientista não consiste em ter intuições de que outros mais tarde darão a prova adequada a esse grau do saber. Não, mil vezes não. A honra e dignidade da ciência não consiste em acertar como na loteria (que só mais tarde comprova o acerto), consiste essencialmente em dar as razões do que assevera e demonstrar o que diz com os recursos adequados a esse grau de saber. Foucault poderia dizer, metafisicamente, que sentia o movimento diurno da Terra como se o pegasse, mas Galileu, sem fraude ou abuso, não podia. Mas não é ainda aí que se situa o nó da questão para o qual abrimos este "respondeo dicendum", é na posição do problema em relação ao senso comum. Perguntávamos se hoje o movimento da Terra é um simples dado do consabido, ou do dilúvio de informações, ou se já ganhou lugar no senso comum. E agora respondo dizendo que hoje o movimento da Terra se incorporou aos dados periféricos do senso comum porque entre os dados mais nucleares da petite sagesse está a confiança no que se tornou opinião universal e incontrovertida apesar da minguada minoria dos astrônomos.

Diferente era a situação no tempo de Galileu: a influência do consabido da época no senso comum tornava-o pouco acolhedor de uma transposição de eixos que colocasse o observador no Sol a menos que se atribuísse ao Sol uma imutabilidade e outros atributos cientificamente desnecessários para salvaguardar o "depósito observado", mas psicologicamente necessários para amolecer as resistências do senso comum e predispô-lo a novidades fantásticas de caráter gnóstico em que se misturavam dados de ciência e de religião entremeados.

O heliocentrismo e o culto do "Deus-Sol"

A História é sempre composta de uma face clara, consciente, superficial, onde se demarcam as datas, se travam as batalhas e se mudam os regimes, e de outra subterrânea, por onde correm os vasos capilares de mistério, irracionalismo e perpétua conspiração que os homens inventam nas profundezas da alma com a ilusão de conjurar assim as variadas aflições da vida.

O claro e estridente século da Renascença e da Reforma, com toda a sua presunção cientificista, ou por causa dela, não escapou à regra geral e até pode-se dizer que confirmou-a com certo exagero. Assim é que no próprio domínio da ciência que produzirá o cartesianismo e o culto das idéias claras vê-se o lado sombra formado pelo culto religioso do Sol, que vigorava na era das pirâmides, no Egito e na Mesopotâmia.[8]

Num recente artigo,[9] Lewis Mumford assinala a estranha composição do "progressismo" do século XVI, metade mecanicista e metade gnóstico, sendo de notar que a parte gnóstica, esotérica ou mágico-supersticiosa, não era trazida pelas classes mais ignorantes, mas pelos mesmíssimos "filósofos" que enaltecem a ciência e que no século seguinte começarão a preparar a revolução. Vale a pena inserir aqui algumas passagens de Mumford:

Se algum ponto da História pode ser assinalado como o início da moderna concepção do mundo, concepção mecânica, expressão de uma nova religião e base de um novo sistema de poder, esse ponto está na quinta década do século XVI. Nesse tempo não foi apenas o sensacional De revolutionibus Orbium Coelestium, de Copérnico, que veio a lume; foram também o tratado de anatomia De Humani Corporis Fabrica, de Vesalius (1543), a Ars Magna, álgebra de Jerônimo Cardano (1S4S), e a teoria da bacteriologia patogênica enunciada por Fracastor em De Contagine et Coníagionis Morbis (1S46). Cientificamente pode-se dizer que foi a década das décadas.


A maneira usual de interpretar a chamada revolução coperniciana é a que considera como principal efeito a ruptura de uma teológica e assentada concepção, pela qual Deus colocara a Terra no centro do universo, e fizera do homem o objeto último de Sua atenção. Se o Sol é efetivamente o centro do universo, então toda a estrutura da teologia dogmática cristã — com seu único ato de criação e a alma humana tida como interesse central de Deus, e a provação moral do homem neste mundo como preparação para a vida eterna em conformidade com a vontade de Deus — toda essa estrutura está ameaçada de colapso.

Observo eu que não é a Sagrada Congregação do Santo Ofício que está dizendo essas coisas em Roma nos idos de 1616, é o atualíssimo e muito lúcido autor de The History of Utopies que nos descreve o impacto cultural, teológico e, conseqüentemente, o impacto na fé católica trazido pelo "heliocentrismo", e nos prepara o espírito para a divertida surpresa de ver o refluxo desse impacto sobre os próprios autores das descobertas, invenções, utopias ou sonhos.

Continua Mumford:

Visto através das novas lentes da ciência, o homem encolheu. Em termos de escala astronômica, o gênero humano totaliza pouco mais do que um efêmero e inquieto mofo deste pequeno planeta. A ciência, que realizou esta impressionante descoberta pelo simples exercício das naturais faculdades humanas e não pela divina revelação, tornou-se a única fonte de autêntico conhecimento digno de crédito. Tudo isto, porém, embora nos pareça hoje tão claro, não foi imediatamente reconhecido por aqueles que estavam mais profundamente cativados pela nova religião...


Cabe aqui um reparo: esse encolhimento do homem não ocorreu logo no século XVI, após a formulação do heliocentrismo por Copérnico, porque a escala astronômica só ganhou divulgação depois da medida da distância do Sol que, não podendo ser feita por método puramente trigonométrico com base na Terra como a distância da Lua, foi efetivada pelo astrônomo Halley em 1631 por um processo mais indireto, que envolvia a observação de uma passagem de Vênus sobre o disco solar observada por dois astrônomos muito afastados. Essa distância, que orça por 149.000.000 quilômetros, passou a ser o metro da nova escala astronômica que
somente no século XIX (1840), quando Bessel mediu a primeira paralaxe da estrela 6N do Cisne, ganhou as dimensões de anos-luz que logo passaram de 4,3 (da estrela mais próxima, Alfa do Centauro) para milhares, milhões e bilhões de anos-luz com os sucessivos progressos da espectroscopia, da fotometria e da atual radioastronomia. Como, porém, "tudo isto foi descoberto pelo simples exercício natural das faculdades humanas, segundo observa Lewis Mumford, o conseqüente encolhimento do homem esmagado pela escala astronômica foi alternativamente seguido de momentos de narcisismo idolátrico: o próprio homem, em vez de passar de pulga a Napoleão, como na cabeça de Raskalnikoff, oscilava vertiginosamente entre Deus e Nada. Nunca chegara a tão delirante amplitude a oscilação psicológica a que Oliver Brachfeld[10] denominou "complexo de Gulliver". E nunca se descurou tanto o conselho de Pascal: não é bom falar na glória humana sem evocar sua miséria, mas também não é bom demorar-se em sua miséria sem lembrar sua glória.

Outro reparo: Mumford diz que todas as exorbitâncias do cientificismo, que hoje nos parecem claras, não foram imediatamente percebidas por aqueles que estavam profundamente cativados pela nova religião. Ora, isto que parece tão claro hoje a um dos mais argutos observadores da atualidade continua obscuro para os "progressistas" da nova religião, e o que disse ele ter passado despercebido aos "progressistas" da nova religião do século XVI não passou despercebido ao Santo Ofício, cujos juízes, no caso Galileu, sentiram, no nível do senso comum vivificado pela Fé, ou graças aos dons do Espírito Santo, não apenas uma tese ousada e mal fundada, mas todo um intrincado processo de cientificismo e de gnose que divinizava o Sol, no século XVI, como nos mostra Lewis Mumford, que mais adiante escreve:

O efeito imediato da nova teologia foi o de reviver concepções que datavam do tempo das pirâmides no Egito e na Mesopotâmia.

Alongando-se, no referido artigo, em considerações que merecem ser lidas e meditadas, em certa altura Mumford cita Battersfield, que diz: "Copérnico se torna lírico e chega quase à adoração do Sol quando escreve a respeito de sua natureza monárquica (regai) e da posição central que ocupa". Tyllyard assinala que o Sol, na era elisabetana, era geralmente considerado como a contraparte material de Deus.

O caso Galileu [11]

Creio que agora temos, na condensação que nos foi possível, as várias noções e os vários dados que permitem uma abordagem do caso Galileu que permitirá, assim o espero, desanuviar mais uma das tantas histórias mal contadas com que se tece a história.

Eis os termos em que o Santo Ofício, sob o pontificado de Paulo V, foi consultado em fevereiro de 1616.

Duas proposições foram apresentadas.

1 — O Sol é o centro do mundo e por conseqüência imóvel de movimento

2 — A Terra não é o centro do mundo nem imóvel, mas move-se ela toda por um movimento diurno.

Poucos dias depois a resposta é dada:

a) "A primeira proposição é insensata e absurda em filosofia e formalmente herética, por contradizer expressamente muitas passagens da Sagrada Escritura, conforme a propriedade dos termos, segundo a
interpretação comum e o sentido dos santos padres e dos doutores da teologia";

b) "quanto à segunda proposição, ela merece a mesma censura filosófica, e em relação à verdade teológica é pelo menos errônea na fé.[12]

Dois dias depois, o comissário do Santo Ofício notifica a Galileu a censura lavrada contra a opinião segundo a qual o Sol está no centro imóvel do universo, e a Terra se move. Essa opinião não deve ser sustentada nem defendida. Galileu é advertido das penas a que se expõe e promete obedecer.

Aqui termina a primeira parte do caso Galileu, e desde já se escandalizam os que vêem em tais condenações do Santo Ofício um crime de lesa-majestade contra a Ciência. Ora, por incrível que isto pareça aos que se deixaram conscientizar pelo culto da "livre pensée" (que na verdade, como veremos, é um culto da "pensée vide"), ouso dizer que essa reação é errônea. O próprio Maritain, que quer ser mais anti-antimoderne do que nunca, diz mais adiante[13] que: "se os juízes do Santo Ofício se enganaram tão gravemente foi porque, por um errôneo princípio ainda mais perigoso (por ser de alcance geral) julgaram que a ciência dos fenômenos estivesse sob a jurisdição da teologia e de uma interpretação geral da Sagrada Escritura”. Pode ser — digo eu a título de hipótese — que os juízes do Santo Ofício acreditassem nesse falso princípio epistemológico, mas o que é certo, e duvido de que algum filósofo ou teólogo possa contestar-me, é que, se a teologia e o Magistério da Igreja não podem julgar as ciências dos fenômenos nos seus processos intrínsecos e próprios, podem e devem julgar o uso que o cientista faz das intuições e teorias interpretativas do fenômeno. Não ignoro que essa jurisdição da Igreja é hoje negada e recusada em todo o nosso bravo novo mundo gloriosamente pluralista. Mas é preciso lembrar que, no tempo de Galileu, a Igreja e o Santo Ofício ainda se sentiam responsáveis por todos os passos em que a prudência pastoralmente recomendava moderação nos domínios da ficção e do sonho científico. Além disso, explica-se certa brutalidade na sumária condenação do Santo Ofício, que parece efetivamente colocada em termos dogmáticos, pela consciência que tinha de representar ainda a paternal proteção de uma civilização cristã.

Podemos admitir que os assessores e juízes do Santo Ofício, não sendo todos geniais e santos como Santo Tomás, tenham confundido a censura pastoral que as proposições de Galileu bem mereciam com a censura dogmática que só mereceriam efetivamente os erros formalmente contrários à Revelação e à Fé; mas não podemos deixar de assinalar que tais proposições, lançadas num contexto cultural despreparado, em que os próprios astrônomos como Tycho Brahé reclamavam provas mais convincentes, afligiriam a cristandade nos costumes intelectuais, no nível do senso comum que, além da Fé e dos Costumes, também está sob a alvaguarda da Igreja. Além disso, notemos que a Igreja seria impraticável, e que a Civilização Cristã seria impraticável, se os juízes do Santo Ofício devessem todos ter a estatura de Santo Tomás. O próprio Maritain (na página 357 da mesma obra citada) diz encolerizado que:

. . . se era verdade —• e é efetivamente verdade — que (como diz o Cardeal Journet) todos os contemporâneos tinham como evidente "que essa condenação doutrinal atingia matéria revogável por uma autoridade falível", eles, os juízes, eram certamente os primeiros a saber que podiam estar enganados.


É o caso de perguntarmos: e daí? Se os juízes do Santo Ofício só podiam proibir e censurar infalivelmente, concluo eu que o erro não está no personnel mas na Personne da Igreja que tanto tempo admitiu a possibilidade de governar que necessariamente inclui a possibilidade de decisões gravíssimas em matéria revogável, e fora do domínio estrito da infalibilidade. Se o Santo Ofício além de uma grave mancada (bourde) cometeu um "abuso de poder", então concluímos que é impraticável o governo da Igreja, já que o exercício da infalibilidade deve ser poupado preciosamente para as questões extraordinárias, e diretamente contrárias à Fé e já que o governo exige medidas pastorais em todas as matérias ordinárias.

E volto a dizer, com a consciência de estar afrontando de um lado um himalaia de opiniões amontoadas durante quatro séculos, e de outro um autor que em filosofia sempre tive por mestre, que o pronunciamento do Santo Ofício quis dizer que aquelas proposições eram perigosas contra a fé, nocivas à fé no nível do senso comum, que é uma sabedoria (rústica embora), e como tal superior e mais merecedora de cuidados do que as ciências das coisas exteriores e inferiores que nada perderiam por esperar um pouco o sinal verde nos cruzamentos da história, e que põem em risco toda a civilização se querem ser elas as infalíveis.

Além disso, nunca é demais insistir neste ponto: o erro do genial Galileu, no seu próprio campo científico, foi mais grave e mais petulante do que o excesso de formulação dogmática com que o Santo Ofício o advertiu. A idéia de um Sol imóvel no centro do mundo é mais grotesca, mais fantástica, mais insensata do que a tradicional idéia que colocava o centro na Terra em que surgiu o homem e se encarnou o Verbo de Deus. O Santo Ofício, sem o saber, sem mesmo fazer questão do provar as sucessivas revoluções da Física, dizendo que o "heliocentrismo" era insensato e absurdo "filosoficamente", diz o mesmo que diriam os físicos modernos: a proposição que diz estar o Sol imóvel no centro do universo é meaningless para um físico, "e mesmo para um não-físico" como disse Einstein em situações semelhantes. Mais acertada é a proposição filosófica ou teológica que coloca o centro do mundo onde está o observador capaz de medir paralaxes e anos-luz, ou onde esteve a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade em sua condição carnal.

Sim, em 1611 como em 1971, e como em 2611 e até o fim do mundo, só terá sentido a noção de centro do universo na ordem do conhecimento e do amor. O Sol será, se quiserem, centro imaginário (ente de razão matemática) da órbita percorrida pelos centros de gravidade dos planetas, órbita circular para Galileu, elíptica para Képler, e complicadamente helicoidal quando se descobriu, depois que a análise espectral revelou o deslocamento de certas raias K na direção do vermelho ou na oposta conforme se observavam estrelas nas cercanias da constelação de Hércules, ou na oposta. Desde essa observação ficou sabido que messer frate il sole, longe da majestática imobilidade que lhe atribuíram Copérnico e Galileu, é um globo incandescente caindo, ou melhor, errando no espaço, mais erradiamente do que Parsifal sem elmo e sem lança. Desmanchou-se num novelo caprichosamente desenrolado o pomposo "heliocentrismo" que sempre foi uma pobre verdade de fraca compleição, como dizia Ibsen, porque já no tempo de Képler o Sol passou do centro do círculo para o foco da elipse, e hoje não passa de um dos trepidantes e incertos grãos de nosso restless Universe, como diz Max Born.
Na verdade, a proposição apresentada ao Santo Ofício por Galileu, ligada à presunção de uma prova física de que lhe parecia "evidente como se a tocasse com as mãos", constitui um monstro epistemológico, onde se misturam os graus de abstração e onde a hipótese explicativa se transforma em dado observado, ligado a uma fraude pelo empenho com que tentou, na divulgação, inculcar a idéia de uma prova científica.

Parece-me indubitável que, nesse episódio, Galileu, como cientista, errou mais gravemente na formulação de sua comunicação do que os juízes do Santo Ofício erraram como teólogos; porque para defender cabalmente o enunciado da condenação basta-nos colocá-lo no plano pastoral de defesa do senso comum barbaramente agredido, não pelas pesquisas e observações dos satélites de Júpiter, não pelas teorias explicativas apresentadas prudentemente com caráter de hipóteses, mas pela fraude com que se pretendia inculcar como provado o que teria de esperar muito estudo para ganhar direito a um enunciado decentemente científico. E aqui parece-me especialmente infeliz a nota (a) de Maritain (op.cit.pág.393):

Que Galileu não tenha realmente demonstrado o movimento da Terra nada tem a ver aqui. Realmente foi somente depois de Newton que o heliocentrismo se impôs a todos os homens de ciência. As provas invocadas por Galileu não eram demonstrativas e pouco valiam. Mas, antes de mostrar e sem estar ainda em condições de fazê-lo, há no espírito do grande sábio uma percepção intuitiva que basta (grifo nosso) para lhe dar uma convicção da qual — certo ou errado (grifo nosso), isto é outro assunto que diz respeito ao progresso da ciência — ele absolutamente não duvida. Tal foi o caso para o gênio intuitivo de Galileu.


Nesta nota infelicíssima, onde se evidencia o empenho de glorificar um dos motoristas do progresso da ciência, em detrimento do obscurantista Santo Ofício, não reconhecemos o autor de Théonas, de Antimoderne, de Trois Rêformateurs, de Reflexiona sur l’Intelligence et sa Vie Propre, não reconhecemos o severo e exigente filósofo que nos ensinou, entre mil outras coisas, esta lição que eu já escrevi atrás e agora repito: a honra e dignidade do cientista não consiste em ter acertado (ou quase acertado) a proposição que outros demonstrarão, e da qual ele mesmo, dizendo que a sente como se a tocasse, não sabe provar; não, mil vezes não: a honra do cientista, do filósofo e do teólogo não é de natureza esportiva ou lotérica, não consiste em acertar à tort ou à raison, mas consiste essencialmente em dar as razões de sua proposição.

Os tomistas, e com toda a razão, costumam ficar irritados quando os franciscanos lhes dizem, ou melhor, lhes diziam com garbo que Duns Scotus acertara na questão da imaculada conceição da Virgem Santíssima, enquanto Santo Tomás perdera o ponto. Volvendo com saudades aos bons tempos em que dominicanos e franciscanos discutiam essas coisas, lembro-me de um O.P., não sei se Garrigou- Lagrange ou Gardeil, que chegava a asseverar que no encaminhamento da proclamação do dogma valeram mais os argumentos refutadores de Santo Tomás do que os surtos intuitivos com que Duns Scotus, à fort ou à raison, afirmava.

No caso Galileu, para terminar, direi que hoje, melhor do que nunca, estamos em condições de apreciar a real e profunda intuição com que o Santo Ofício sentiu a presença do monstro — o cientificismo e não a ciência — que arrombava as porteiras e se precipitava para devastar uma civilização. Mas nossa constatação não é triunfalista porque são muito poucos os que participam dela; é antes melancólica, e tem todo o travo de uma batalha perdida.



[1] Duas referências adicionais poderão ser importantes ao leitor: a primeira são os
artigos de Olavo de Carvalho sobre a Mente Revolucionária (por exemplo,
A mentalidade revolucionária, Mensagem de Natal 2007, A lógica da destruição, Afinal, lutamos contra quem?). A segunda, sobre a “poluição nominalista”é o texto por mim traduzido de Richard Weaver e publicado neste blog sob o título A dissolução do Ocidente: uma introdução. (N. do B.)

[2] Gustavo Corção, A Descoberta do Outro, AGIR.

[3] Não posso deixar de lembrar a passagem de Doutrina Cristã, Livro I, parte B, capítulo 11, item 11a, do grande Santo Agostinho: Ora, nós não conseguiríamos nos purificar se a própria Sabedoria não se houvesse dignado adaptar-se à nossa tão pequena fraqueza carnal, para tornar-se modelo de vida, precisamente fazendo-se homem, visto sermos nós homens. // Mas ao passo que agimos sabiamente quando nos aproximamos da Sabedoria, ela, ao vir a nós, foi considerada, por homens soberbos, como realizadora de loucura. Enquanto nós nos fortificamos ao nos aproximar da Sabedoria, ela, ao se aproximar de nós, foi considerada como realizadora de ato de fraqueza. Contudo, o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens (1Cor 1,25), // Eis por que a Sabedoria, sendo a pátria, fez-se também caminho para levar-nos à pátria. (N. do B.)

[4] Dois textos adicionais são importantes sobre a questão do senso comum, ambos de Marcel de Corte: Common Sense in Crisis e Inteligência em Perigo. (N. do B.)

[5] Jacques Maritain, De 1'Eglise du Christ, Desclée de Brouwer, 1970, pág. 345 e seg.

[6] S. J. Mason, Histoire de la Science, Armand Colin, 1956, pág. 10.

[7] PERMANÊNCIA, n° 41, pág. 22.

[8] Na verdade, a Renascença foi um dos períodos mais saturados de magia, só não ultrapassando o Iluminismo nos séculos XVIII e XIX. Ver, sobre a Renascença, Giordano Bruno e a Tradição Hermética, Francis A. Yates, Cultix, 1995. Ver, sobre o Iluminismo nos séculos XVII e XIX, Hope of the Wicked, Ted Flynn, Maxkol Communications, 2000, e the Theosophical Enlightenment, Joscelyn Godwin, State University of New York, 1994. (N. do B.)

[9] Lewis Mumford, The Megamachine, em "The New Yorker", 10-17 outubro de 1970.

[10] Oliver Brachfeld, Los Sentimentos de Inferioridade, Luiz Mirade, Barcelona, 1959, pág. 24 e seg.

[11] Ver, sobre o assunto, extenso estudo de Pietro Redondi: Galileu Herético, Companhia das Letras, 1991. (N. do B.)

[12] Jacques Maritain, op. cit.

[13] Ibid.

04/05/2008

Lições das Missas dominicais pós-Vaticano II – Parte V

Omnes gentes, pláudite mánibus: jubiláte Deo in voce exsultatiónis.”

Nota inicial explicativa: Já vamos para o quinto comentário sobre as mensagens que a Missa nova nos traz, por meio do Semanário Litúrgico-Catequético O Domingo. Devo aos leitores uma explicação da razão porque estou fazendo esses comentários dominicais. Em primeiro lugar, para cumprir uma obrigação de católico: defender a Igreja de seus inimigos. Em segundo lugar, para manter minha – e, se possível, a dos leitores deste blog – sanidade mental frente a ataques constantes de uma turba enlouquecida de padres apóstatas e suas doutrinas heréticas.

Toda vez que sou obrigado a assistir a uma Missa nova – em Belo Horizonte temos a Missa Tridentina a cada quinze dias – me deparo com o tal semanário e não posso deixar de ler a parte supostamente catequética do folheto. A catequese não é católica, como todos esperariam, mas marxista, como tenho evidenciado em meus comentários. Eu não leio essa parte durante a Missa, pois, se o fizesse não conseguiria assistir a celebração com a atenção e respeito que N.S.J.C. merece. Leio-a depois, em casa. É o que recomendo a todos.

Com o tempo, veio a necessidade interior de me rebelar contra tamanhas mentiras, heresias e sandices escritas ao final do folheto. Esses comentários que faço são o resultado desse movimento interior de revolta.
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Comento abaixo dois textos de autoria de Pe. Benedito Ferraro, que aparecem no folheto de 27/04/2008 (Documento de Aparecida: Opção preferencial pelos pobres e excluídos) e no folheto de 04/05/2008 (Documento de Aparecida: As comunidades Eclesiais de Base [CEBs]).

Os dois documentos versam sobre o mesmo tema de forma que eu os comentarei juntos. Todos os negritos abaixo são meus.

A idéia central de Pe. Ferraro é que Deus tem uma preferência pelos pobres econômicos, não os “pobres de (em) espírito” do Evangelho. Assim, Jesus foi enviado por seu Pai para salvar os pobres econômicos, não os humildes, os simples. Quando a Igreja assumiu a missão de Cristo, ela, no entendimento (ou falta de) do Pe. Ferraro, assumiu então a tarefa de salvar os pobres. Bem, pensarão os leitores, a idéia é então salvar as almas dos pobres econômicos. Que se danem os ricos! Apesar de isso estar completamente errado, vá lá, ainda é muito melhor do que o verdadeiro pensamento de Pe. Ferraro e, conseqüentemente, da CNBB. A idéia desses heréticos é que a Igreja tem o papel de salvar, não as almas dos pobres, mas salvar os pobres da pobreza! Ou seja, de torná-los menos pobres, ou até ricos, de riqueza material, não espiritual.

Diz Pe. Ferraro que “A grande novidade da Igreja na América Latina e no Caribe é a entrada dos cristãos e cristãs na luta política de libertação dos pobres e excluídos.” Viram só? Mais adiante ele diz: “As CEBs fazem a ligação da fé com a vida, de tal modo que, com base nessa ligação, percebemos novo modo de viver a fé, assumindo todas as questões vindas do mundo econômico, da política e das culturas; novo modelo de transmitir a fé.”

Aí está! As CEBs são células revolucionárias de uma fé econômica e política. Mas Pe. Ferraro – meu estomago fica embrulhado toda vez que chamo esse sujeito de padre – resolve fundamentar essas idéias nas Sagradas Escrituras. Vamos às suas citações bíblicas. Vocês verão quão vagabundas são as credencias exegéticas de padre.

A primeira citação é de Mateus (Mt 11, 25-26). Esses versículos fazem parte de uma fala de Jesus extremamente importante. Nela Ele afirma sua condição de Filho de Deus e: “Ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelar.” Antes disso Ele afirmava: “Eu te louvo e agradeço, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e aos sagazes e as revelaste aos simples”. Sei bem que Pe. Ferraro quer fazer todo mundo entender “simples” por “pobres”. Mas é impossível tal entendimento. Primeiro porque Jesus contrapõe aos simples, os sábios e sagazes, não os ricos e poderosos. Depois porque a palavra que aparece na Vulgata é parvulus que significa pequenino, não importante, simples. A mensagem de Jesus é simples (desculpe o trocadilho): O Pai, através de seu Filho, se revela aos simples e humildes, não aos sábios, sagazes e arrogantes. Os simples e humildes podem ser ricos ou pobres, negros ou brancos, reis ou súditos, desde que sejam simples e humildes.

A segunda citação é também de Mateus (Mt 25, 31-46). Aqui Jesus fala da caridade que todos devemos aos sofredores deste mundo: famintos, sedentos, nus, peregrinos, encarcerados e doentes. Ele fala ainda mais: devemos a todos esses sofredores o mesmo amor que devemos ao próprio Cristo: “Em verdade vos digo que tudo o que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes.” Aqui está a fundamentação da opção preferencial pelos pobres do mundo. Mas, vejam bem: Jesus não diz que devemos lutar contra a pobreza genérica, libertando os pobres da pobreza. Ele diz que devemos ajudar os pobres, dando-lhes comida, roupa, água, remédios, o que pudermos. Jesus não diz que devemos libertar os presos; diz que devemos visitá-los, confortá-los, rezar por eles. Jesus não diz que devemos derrubar o governante da região em que haja pobres, presos e doentes.

Aliás, é bom lembrar ao Pe. Ferraro que, se ele continuasse lendo o Evangelho de Mateus, logo à frente, ele encontraria a seguinte passagem (Mt 26, 6-11): “Estando Jesus em Betânia, em casa de Simão, o leproso, aproximou-se dele uma mulher com um frasco de alabastro cheio de ungüento perfumado e de grande preço e derramou-lho sobre a cabeça, quando ele estava à mesa. À vista disso, os discípulos indignaram-se e disseram: “Para que este desperdício? Podia-se vender aquilo a alto preço e dar-se aos pobres”. Mas Jesus percebeu e disse-lhes: Por que molestais esta mulher? Foi por certo uma boa obra que ela praticou comigo. Com efeito, pobres sempre os tereis convosco, a mim, porém, não me tereis para sempre.”

Veja que oportunidade perdeu Jesus, caso Ele tivesse vindo ao mundo para acabar com a pobreza. Ele poderia ter concordado com os discípulos (e, certamente, com Pe. Ferraro) e repreendido a mulher. Não só Ele repreendeu os discípulos como nos disse que “pobres sempre os terei convosco”. Esses pobres são realmente os econômicos, pois o dinheiro do ungüento serviria para ajudá-los. Assim, a mensagem de Jesus é a de que não há como acabar com a pobreza econômica, apesar de sermos obrigados, como seguidores Dele, a ajudar os pobres em seus sofrimentos.

A próxima citação é a dos Atos (At 2, 42-47). Aqui, São Lucas descreve a Igreja primitiva em sua vida de comunhão, partilha e oração. Os versículos 44 e 45 dizem: “E todos os cristãos viviam juntos e tinham tudo em comum; vendiam propriedades e bens e as distribuíam por todos, conforme cada um precisava.” Houve um tempo, antes do Concílio Vaticano II, quando os comentários exegéticos das Sagradas Escrituras, que acompanhavam suas sucessivas edições, eram feitos por padres de verdade. Assim, vou citar um tal comentário exegético, da edição do Novo Testamento das Paulinas, de 1969. Os exegetas são os padres Frederico Dattler, Daniel de Conchas, Léo Persch, Antônio Chabel e Joaquim Salvador. Essa edição foi traduzida, anotada e dirigida pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Vamos aos comentários da expressão “tinham tudo em comum” que aparece em negrito acima: “não, porém, em sentido absoluto e universal. Isso aparece claramente pelo que S. Lucas diz, mais adiante, a respeito de Barnabé e de Ananias (4,36;5,4). Era um heroísmo santo e voluntário dos ricos que ajudavam generosamente aos pobres; a esse heroísmo aderiam, com plena liberdade, os que quisessem, como hoje ainda sucede na disciplina da pobreza das ordens religiosas. O fato, contudo, não era tal que pudesse ir além do período heróico primitivo da Igreja, favorecido como era pela abundância transitória dos carismas. Aliás, fora de Jerusalém só foi imitado esporadicamente. Seria, sem dúvida, absurdo querer apelar para esse exemplo de heroísmo voluntário para justificar a bárbara loucura de um comunismo imposto a todos pela força, e que teria por conseqüência a destruição da liberdade humana, da unidade familiar e de todas as fontes do progresso da civilização, acabando no embrutecimento universal.”

Antigamente, a Igreja condenava o comunismo! Diante desse comentário exegético pré-CVII, eu não tenho nada mais a dizer. Note a observação, que deve fazer tremer de raiva Pe. Ferraro: “Era um heroísmo santo e voluntário dos ricos”. Dos ricos, Pe. Ferraro, não dos pobres.

Tudo o que Pe. Ferraro diz é lixo marxista travestido de evangelização. Vade retro, satanás!

Para terminar este comentário que já vai longo, convido os leitores a lerem Antídotos contra a Teologia da Libertação e Cardeal e Papa condenam a Teologia da Libertação.

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03/05/2008

Sábios ignorantes

George Gilder

O novo livro de David Berlinsky descreve como a ciência tem se tornado atualmente a religião dominante da intelligentsia. O nome mais adequado a essa nova religião – que se baseia no ateísmo e no materialismo – é “cientificismo”, pois suas alegações religiosas ultrapassam muito seu conteúdo científico.[1]

O cientificismo reflete a tendência dos cientistas de se tornarem o que Ortega y Gasset chamou de “bárbaros da especialização”. O saber muito sobre uma só coisa lhes dá a confiança de pontificar sobre outros assuntos nos quais suas especialidades são irrelevantes, ou de inflar seus pequenos remendos de especialização na direção de “grandes teorias unificadas”.[2] Sabendo cada vez mais sobre cada vez menos, eles finalmente ascendem aos canais de TV, tagarelando sobre qualquer coisa e sobre todas as coisas. George Clooney ou Carl Sagan, Al Gore ou James Watson – atores, políticos, cientistas – quem os consegue distinguir, no seu balbuciar de relativismo moral e escatologia anticapitalista?

A ideologia superficial desse tipo de gente é o alvo do livro de Berlinsky. Um Ph.D. de Princeton, judeu secular, ex-fellow do Institute de Hautes Etudes Scientifiques in France – agora membro do Discovery Institute, fundado por mim – Berlinski domina uma gama de disciplinas científicas e filosóficas que o projetam muito além do campo dos bárbaros orteguianos. Autor polivalente de cintilantes obras em matemática e lógica, ele tem escrito, nos últimos anos, incandescentes ensaios em biologia, física, psicologia e matemática na revista Commentary que têm provocado uma enxurrada de respostas embasbacadas na seção de cartas (As respostas de Berlinsky são criminosamente letais).

The Devil´s Delusion (algo como O Delírio do Demônio) é um trabalho incendiário e ruidoso de polêmica erudita, único em sua sofisticação e autoridade científica. Em vez de criticar a ciência desde fora, Berlinsky condena seu ateísmo desde dentro. Recusando-se a ceder ante as credenciais do cientificismo, ele argumenta incisivamente que o fetiche anti-Deus da ciência moderna tem levado muitos cientistas à loucura do niilismo, o que também prejudica seu trabalho científico.[3]

Detalhando o registro de massacres horrendos cometidos por agressivos ateus durante o século XX, Berlinsky observa “o que qualquer um capaz de ler as fontes alemãs já sabia: uma sinistra corrente de influência corre desde a teoria da evolução de Darwin até a política de extermínio de Hitler”. Um argumento implícito fundamenta todos esses horrores: (A) “Se Deus não existe, então tudo é permitido”; (B) “Se a ciência é verdadeira, então Deus não existe”; (C) “Se a ciência é verdadeira, então tudo é permitido”. Como mostra Berlinsky, essas proposições levaram previsivelmente (Dostoevsky e Nietzsche previram isso, afinal) ao Holocausto.[4]

Ao contrário, nota Berlinski, Christopher Hitchens (God Is Not Great[5]) parece por a culpa dos excessos de Hitler no Vaticano, e Sam Harris (Letter to a Christian Nation[6]) chega quase a culpar os judeus por esses excessos: Harris acusa “sua [dos judeus] recusa em assimilar (e) sua cultura religiosa (que é) tão desagregadora ... e conflitante com as percepções civilizadoras da modernidade quanto qualquer outra religião.” Para Sam Harris, em Santa Bárbara, “percepções civilizadoras da modernidade” são evidentes nas praias repletas de palmeiras, nos cafés e teatros locais e no doce aroma do iluminismo que impregna o ar refrescante, mas Berlinsky, com razão, pergunta-se se homens que usam o ateísmo para atenuar o anti-semitismo pode servir de guia confiável para influências civilizadoras.

Depois de demonstrar a obtusidade moral da ciência atéia, The Devil´s Delusion prossegue criticando suas limitações debilitantes mesmo como meio explicativo da realidade física. Ignorando a estrutura hierárquica do universo, com o conceito precedendo o concreto, o algoritmo precedendo o computador, a palavra DNA precedendo a carne, e a teoria precedendo o experimento, a ciência tem cegado a si própria para o indispensável papel da fé para todos os tipos de conhecimento. Na visão de Berlinsky, há um ponto de convergência crucial entre as leis físicas e as leis morais: “Em ambos os casos não sabemos porque as leis são verdadeiras mas podemos sentir que a questão esconde um profundo mistério.” A ciência, como assevera Berlinsky, “está, em todas a áreas, saturadas de fé.”

A fé que é necessária ao trabalho científico, contudo, está corrompida por um ateísmo complacente que afasta a ciência da realidade de suas próprias e necessárias suposições religiosas e hierárquicas. A ciência não abriga, de forma alguma, a idéia de “como o mundo ordenado física, moral, mental, estética e socialmente em que vivemos pode ter surgido da efervescente anarquia do mundo das partículas sub-atômicas.” O chamado “modelo padrão” parece suprir “tantas partículas elementares quando os fundos de pesquisa aplicados para encontrá-las”, ao mesmo tempo em que oferece escasso apoio à suposição reducionista de que o mundo é mais bem compreendido pelo processo de atomização cada vez mais agudo.

Além do reducionismo, a ciência oferece pelo menos 7 teorias incompatíveis sobre a realidade: a teoria quântica, focalizada em elementos sub-atômicos; a teoria da relatividade, abarcando todo o universo; a teoria das cordas, que procura a grande unificação em infinitésimos multidimensionais; a termodinâmica, com sua seta do tempo e a declinante entropia; a evolução, com sua grandiosa ascensão materialista; a biologia molecular, com seus códigos genéticos descendentes; e o conceito de entrelaçamento macro-quântico, que liga entidades quânticas espalhadas pelo cosmos além do espaço e tempo convencionais. Cada teoria oferece impressionantes insigths a respeito de alguns domínios limitados, mas fracassa em harmonizá-los com as regiões vizinhas.

Erodindo a coerência de todo o conjunto está o caráter autodestrutivo do materialismo subjacente: uma teoria que nega a significância das teorias e dos teoristas. Refutando prontamente a si mesma está a idéia de que idéias são meros epifenômenos de sistemas físicos (cérebros) que se formam a partir de processos aleatórios.

Todos os sistemas físicos incompatíveis da ciência moderna repousam, em última análise, sobre a lógica matemática. Assim, a descoberta matemática mais importante do século XX fez picadinhos de todo o materialismo ateísta: a inexorável incompletude gödeliana da matemática. Tal como Kurt Gödel, Alan Turing, Alonzo Church e Gregory Chaitin provaram que a lógica matemática, seja expressa em termos de algoritmos computacionais, seja em termos de equações diferenciais, se fundamenta, em última análise, em premissas externas a si mesma. Em outras palavras, a fé é importantíssima para a lógica matemática e para a lógica computacional, que são, por sua vez, esquemas conceituais abstratos de nenhuma forma redutíveis ao dogma materialista.

Para aparentemente desviar a atenção desse vergonhoso paradoxo do ateísmo, alguns cientistas têm se agarrado a um conjunto de risíveis quimeras. Richard Dawkins, por exemplo, aceita a idéia de um “megaverso”, uma estupenda “Paisagem” de infinitos universos paralelos que explicaria as absurdas improbabilidades do materialismo darwinista, pela suposição de que nosso próprio universo é apenas um de um arranjo infinito. Como comentou o físico Leonard Susskind: “Os físicos e cosmologistas estão começando a considerar nossos 10 bilhões de anos luz como algo infinitesimal que é parte de um megaverso estupendo.” O Prêmio Nobel Steven Weinberg resume o argumento, numa transparente tautologia disfarçada de ciência: “Qualquer cientista que estuda a natureza deve viver numa parte da paisagem onde os parâmetros físicos assumem valores adequados para o aparecimento da vida e sua evolução, até o surgimento de cientistas.” Os outros parâmetros são supostamente válidos nos outros universos que não abrigam vida.

Contrária a qualquer evidência empírica, sem nenhum apoio lógico e contra o senso comum, essa estupenda circularidade é chamada de Princípio Antrópico e é considerada uma explicação superior à idéia de Deus. Tal como Dawkins afirma: “É melhor muitos universos do que um deus.” Berlinsky conclui que a preferência de Dawkins pela “Paisagem e pelo Princípio Antrópico representa o relativismo moral aplicado à Física.”

Para evitar o fracasso da infiniversal “Paisagem”, Dawkins termina com o que ele chama de “artimanha final do Boeing 747”. Berlinsky explica tanto a decolagem como a queda:

O apelo ao Boeing 747 tem o objetivo de evocar um sarcasmo jocoso atribuído ao astrofísico Fred Hoyle. A emergência espontânea da vida na terra, observou Hoyle, é tão provável quanto o é a construção de um Boeing 747 pela ação de um tornado que atingisse um ferro velho. Apesar de ser ateu, Hoyle era cético a respeito da teoria da evolução de Darwin ... Como a metáfora do ferro velho expressa com rara economia a impossibilidade do aparecimento espontâneo da vida – essa impossibilidade é aparente em virtualmente qualquer tentativa de cálculo – isso tem sido um constante aborrecimento para Dawkins. Mas Dawkins afirma que se um tornado não pode criar vida, então Deus não pode ter criado o Universo ... A artimanha final do Boeing 747, escreve Dawkins, ‘se aproxima de uma prova de que Deus não existe’. Vocês entenderam?

Como tais absurdas circularidades são cridas e respeitadas por pessoas sérias? Berlinsky conclui que “a disposição dos físicos de explorarem, em pensamento, tais estratégias devem sugerir a um psicanalista perspicaz não tanto um desejo de descobrir uma nova, mas a de evitar, uma velha idéia.” Mas a idéia de um Deus num universo hierárquico é essencial ao pensamento coerente ou para uma cultura edificante de qualquer tipo. Uma cultura que não aspira ao divino, se torna obcecada com a fascinação do mal, desvairando-se em frivolidades, na depravação e no bestial. Sem o sentido de transcendência, a ciência acaba perseguindo o reducionismo trivial, da próxima partícula ou dimensão da corda ao, cada vez mais obscuro, argumento para a animalidade do homem ou para a infinitesimalidade do universo.

A comunidade científica permanece inconsciente desses problemas principalmente por causa de sua estreiteza de horizontes de sua atitude defensiva, protegida pela insignificância da “revisão pelos pares” e pela imunidade à crítica desde fora. “A ciência alega que não necessita de crítica por ser supremamente autocrítica,” escreve Berlinsky. “Um sistema assim concebido sempre trabalha para a satisfação de quem o concebeu”.

O público tende a concordar com isso por causa da alegada relação entre a ciência moderna e a engenharia e a tecnologia. Voltemos então ao 747. Dawkins e seu aliado, Daniel Dennett, declaram que não existem crentes devotos em aviões. Qualquer um que viaje pelo ar, eles dizem, confia sua vida à validade e confiabilidade da ciência moderna. Poucos viajantes encontrariam consolo se, olhando de relance para a cabine dos pilotos, eles os vissem rezando em vez de observando os instrumentos.

Por se basearem no design inteligente e na engenharia “top-down”, contudo, os cientistas que possibilitaram a existência dos aviões não têm nada em comum como o materialismo ateu e o relativismo moral de Dawkins e Dennett. As equações de Navier-Stokes, a ciência dos materiais, a física de estado sólido, a química molecular, o projeto de computadores, dentre uma lista de disciplinas realmente científicas, são expressões não de um processo aleatório “bottom-up”, mas de um planejamento hierárquico em que as idéias e esquemas precedem sua construção física. Na maior parte da história da ciência, de Michael Faraday a Enrico Fermi, seus protagonistas eram mestres da tecnologia do seu tempo. Eles construíam os dispositivos que testavam seus conceitos e estruturavam suas teorias. A ciência e a engenharia são disciplinas cognatas.

Começando com Einstein, contudo, os cientistas alcançaram um papel de gurus filosóficos e profetas teológicos. Somente Einstein e Richard Feynman foram capazes de cumprir sua missão. À procura de grandes teorias, essencialmente teologias, que pudessem unificar todos os esquemas conflitantes da física, mesmo Einstein e Feynman chegaram a reconhecer a futilidade dessa busca. Mas seus sucessores continuaram a busca em círculos tautológicos cada vez menores, chegando, ao final, nos círculos darwinianos da sobrevivência dos mais aptos como a explicação de tudo. Concretizando as abstrações matemáticas e forçando suas equações a extremos que não podem ser sustentados num universo gödeliano, as grandes teorias científicas perderam todo o contato com os fundamentos da realidade da engenharia.

The Devil’s Delusion é um trabalho prometéico que remove os escombros da ciência e cultura modernas. Ele liberta o conservadorismo de sua escravidão a um cientificismo espúrio e estabelece os fundamentos para o realinhamento dos verdadeiros cientistas, dentre os quais há muitos amigos potenciais. Bill Buckley, em seus últimos dias, declarou: “O livro de Berlinsky é todo ele atraente: é dogmático, profundo, brilhantemente polêmico, divertido, e claro, vastamente erudito. Eu o parabenizo por isso.” Buckley estava certo, como sempre. É o livro definitivo do novo milênio.




© 2008 by National Review, Inc., 215 Lexington Avenue, New York, NY 10016


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[1] A tradução e publicação deste artigo, neste blog, têm a permissão da National Review. O artigo foi publicado na edição de 5 de maio de 2008. (N. do T.)

[2] O trecho de La Rebelión de las Masas a que se refere o autor é: “Pero esto crea una casta de hombres sobremanera extraños. El investigador que ha descubierto un nuevo hecho de la naturaleza tiene por fuerza que sentir una impresión de dominio y seguridad en su persona. Con cierta aparente justicia, se considerará como 'un hombre que sabe'. Y, en efecto, en él se da un pedazo de algo que junto con otros pedazos no existentes en él constituyen verdaderamente el saber. Ésta es la situación íntima del especialista, que en los primeros años de este siglo ha llegado a su más frenética exageración. El especialista "sabe" muy bien su mínimo rincón de universo; pero ignora de raíz todo el resto. He aquí un precioso ejemplar de este extraño hombre nuevo que he intentado, por una y otra de sus vertientes y haces, definir. He dicho que era una configuración humana sin par en toda la historia. El especialista nos sirve para concretar enérgicamente la especie y hacernos ver todo el radicalismo de su novedad. Porque antes los hombres podían dividirse, sencillamente, en sabios e ignorantes, en más o menos sabios y más o menos ignorantes. Pero el especialista no puede ser subsumido bajo ninguna de esas dos categorías. No es un sabio, porque ignora formalmente cuanto no entra en su especialidad; pero tampoco es un ignorante, porque es aún hombre de ciencia y conoce muy bien su porciúncula de universo! Habremos de decir que es un sabio ignorante, cosa sobremanera grave, pues significa que es un señor el cual se comportará en todas las cuestiones que ignora, no como un ignorante, sino con toda la petulancia de quien en su cuestión especial es un sabio.” (N. do T.)

[3] Que o afastamento de Deus nos leva à loucura é um tema recorrente em toda a tradição católica, a começar pela Escritura Sagrada. O livro Sabedoria afirma que foi a loucura que fez com que “pelos bens visíveis não chegaram a conhecer aquele que é, nem considerando as suas obras, reconheceram quem era o Artífice.” (Sb 13,1). Quem queira algo mais extenso não pode deixar de ler a encíclica de Leão XIII intitulada Aeterni Patris. (N. do T.)

[4] Apenas para fazer justiça, não podemos esquecer de Victor Frankl que disse essas eloqüentes palavras: “Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto não é senão raciocínio lógico e conseqüente.” Em “Rorty e os Animais”, O Imbecil Coletivo, de Olavo de Carvalho, nota 1. (N. do T.)

[5] Deus Não É Grande, Ediouro, 2007 (N. do T.)

[6] Carta a uma Nação Cristã, Companhia das Letras, 2007. (N. do T.)