27/07/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte II

Ver Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte I e Opondo-se à heresia austríaca


Dr. Peter Chojnowski


A) O sonho libertário de De Roover

Nunca foi uma opção atrativa muito interessante para alguém se basear apenas em concepções prevalecentes em seu próprio tempo. Os Whigs americanos de 1787 inspiraram-se na república romana e os democratas franceses de 1789 recorreram à democracia ateniense. Considerar como um modelo político algo de 2000 anos atrás é um exemplo genuíno do gosto por antiguidades. Pelo menos, Napoleão, com sua admiração tardia por Carlos Magno, retrocedeu apenas 1000 anos para encontrar um exemplo de uma situação em que sua nova forma de governo “funcionara” (Devemos lembrar aqui que a razão de os povos não adotarem, no transcorrer de tanto tempo, esses dois antigos modelos de governo, foi porque eles estavam suficientemente conscientes de que eles não “funcionaram”). Alguns libertários se sentem compelidos a estabelecer uma conexão entre suas idéias e o catolicismo. Resta-nos imaginar quais seriam suas motivações. Contudo, o que é claro é que, na segunda metade do século passado, e mesmo neste século, tem havido libertários que identificam as primeiras idéias capitalistas (considero aqui o capitalismo como a forma econômica do liberalismo – não confundir com o esquerdismo americano) com as que existiam dentro do organismo corporativo da cristandade, antes do “alvorecer” do Iluminismo. Há pensadores libertários mais negligentes que chegariam mesmo a afirmar que não somente há certas anomalias liberais no paradigma do cristianismo histórico, mas ainda, que o liberalismo é o próprio paradigma civilizacional do cristianismo. O foco recorrente de tal “sonho” libertário é a Escola de Salamanca da Renascença Tardia[1] e os santos Bernardino de Sena e Antonino de Florença. A questão principal, apesar de não ser a única, é a do “preço justo”. Será que os escolásticos tardios, representados pela Escola de Salamanca, além de dois santos da Renascença, conhecidos pelos seus sermões a respeito de questões econômicas, podem ser identificados como os primeiros defensores do liberal-capitalismo devido à sua, suposta, insistência de que o “preço justo” que devia ser sustentado pela Igreja, Estado e Sociedade é simplesmente aquele que é dado ao produto devido à inter-relação da oferta do produtor e da demanda do consumidor? Se a “justiça” econômica, no seu nível mais básico e essencial, for simplesmente uma questão de aderência fiel às “leis da oferta e da demanda”, podemos dizer que a visão desses pensadores católicos poderia ser, de fato, caracterizada como um exemplo de um nascente liberalismo econômico. Se há algo mais na “justiça” do que a simples interação da vontade livre do produtor e da escolha livre do consumidor, então o que defendiam esses pensadores não poderia ser denominado uma forma inicial das concepções miseanas/neo-liberais/libertárias.

Ao procurar um exemplo de um neo-liberal que representa essa tentativa de encontrar raízes, num passado distante, das doutrinas liberais que parecem bem modernas, podemos recorrer a Raymond de Roover, que publicou um artigo com o título “O conceito do preço justo: teoria e política econômica” no Journal of Economic History (Dezembro de 1958).[2] É interessante ler o que diz De Roover da “típica” visão medieval, na medida em que ela se relaciona com o tópico “preço justo”. No artigo lemos:

“De acordo com uma crença amplamente disseminada – encontrada em quase todos os livros que trata do assunto – o preço justo estava ligado à concepção medieval de uma hierarquia social e correspondia a um ganho razoável que permitiria o produtor viver e tratar de sua família de uma forma adequada a seu nível de vida [minha ênfase]. Considera-se geralmente que essa doutrina encontrou sua aplicação prática no sistema de guildas. Nesse sentido, as guildas são descritas como agências de bem-estar social, que impediam a competição injusta, protegiam os consumidores contra o logro e a exploração, criavam igualdade de oportunidades para seus membros e asseguravam a eles um meio de vida modesto mas decente, dentro dos padrões tradicionais.” [3]

Indicarei em nota de rodapé todos os autores que compartilhavam esses, universalmente reconhecidos, “equívocos”.[4] Tal era a “idílica” visão da Idade Média sustentada pelo grande economista alemão Max Weber e pelo escritor, polemista e historiador britânico Arthur Penty. Segundo De Roover, outro famoso economista alemão, Werner Sombart (1863-1941), foi ainda além: segundo ele, não somente os artesãos, mas também os comerciantes medievais lutavam por conseguir apenas um ganho suficiente para a sobrevivência em seu nível social, não procurando acumular riqueza ou subir na escala social. Essa atitude, alegava Sombart, estava fundamentada no conceito de preço justo “que dominava inteiramente o período da Idade Média.” [5]


De Roover, contudo, tem um entendimento diferente do ambiente mental da Era Cristã com relação aos preços e à atividade econômica em geral. Em meio a muitos non sequiturs, alegações históricas confusas e, mesmo, contraditórias, encontramos De Roover usando de subterfúgios para desviar a atenção, tais como, “O próprio Tomás de Aquino reconhece que o preço justo não pode ser determinado com precisão, mas pode variar dentro de certa faixa, o que não significa nenhuma injustiça. Isso ... não está de acordo com a dialética marxista; mas concorda com a análise econômica clássica e neo-clássica” [minha ênfase].[6] Assim, uma afirmação moral equilibrada e óbvia sobre um aspecto menor da questão do preço justo, porque ela não está de acordo com a teoria marxista, faz a posição de Santo Tomás de Aquino “concordar com a análise clássica e neo-clássica.”

A lógica bizarra e forçada presente na análise de De Roover só pode ser tratada superficialmente aqui. Por exemplo, um dos economistas “ingênuos”, Werner Sombart, cita Heinrich von Langenstein (1325-97) que diz: “se as autoridades públicas não fixam um preço, o produtor deve fixá-lo, mas ele não deve cobrar mais do que o seu trabalho e as despesas de manutenção de seu nível de vida (per quanto res suas vendendo statum suum continuare posit).” Isso está totalmente de acordo com o entendimento “tradicional” do pensamento social e econômico da Idade Média católica. Langenstein continua na mesma tecla, “E se ele cobra mais a fim de enriquecer-se ou melhorar sua posição, ele comete o pecado da avareza.” [7] Essa posição de Langenstein era “considerada como uma formulação característica da doutrina escolástica do preço justo,” segundo De Roover. A citação de Sombart, De Roover insiste, foi “copiada por todos os autores, desde então.”[8] De Roover tenta jogar água fria no entusiasmo dos historiadores econômicos pelos escritos de Langenstein, dizendo que, “Langenstein não era um dos gigantes da filosofia medieval, mas uma figura menor.”[9] Esta afirmação é, claro, totalmente irrelevante para o tópico em questão. A questão não era se Langenstein era um dos “gigantes” da filosofia medieval, mas se sua afirmação a respeito da teoria e prática econômica pode ser vista como “característica.” Ninguém precisa ser um gigante para ser característico. “Gigantes”, não são, a propósito, nem um pouco característicos, mas isso é uma outra conversa.

Quando De Roover trata de um verdadeiro gigante, Santo Tomás de Aquino, descobrimos afirmações contraditórias em meio a deduções mais que questionáveis. A respeito de Santo Tomás, ele se atém a um tópico que ele – De Roover – acredita confirmará que a “maioria dos doutores [escolásticos]” sustentava que o “preço justo” não correspondia ao custo da produção como determinado pelo status social do produtor, mas era “simplesmente o preço de momento do mercado.” Claramente, De Roover entendia que se o preço justo significasse outra diferente do “preço justo” capitalista, falharia sua tentativa de fundamentar o capitalismo neo-liberal no pensamento e na tradição social católicos. Ele tinha de provar que a “justiça” do preço cobrado na cristandade medieval se realizava exatamente no preço que o item pudesse alcançar no mercado livre. O plano era descrever Santo Tomás como um pioneiro liberal em matéria econômica e, então, indicar como o pensamento escolástico posterior o seguiu, preparando, assim, o terreno para Adam Smith e o liberalismo capitalista de Manchester.

De Roover começa sua análise do pensamento de Santo Tomás de Aquino a respeito do “preço justo” afirmando que nos escritos de Aquino, “as passagens relacionadas ao preço estão dispersas e são tão conflitantes que fizeram surgir interpretações variadas.”[10] Ele então continua, afirmando, claramente, o que Santo Tomás definitivamente quis dizer com o termo “preço justo”. À medida que ele “definitivamente” articula o pensamento de Santo Tomás, ele contradiz não só sua própria interpretação, como também as afirmações de Aquino. Por exemplo, De Roover afirma, “Selecionando apenas aquelas passagens favoráveis às suas teses, certos escritores chegaram mesmo à conclusão de que Alberto Magno e Tomás de Aquino formularam uma teoria do valor-trabalho.” Numa nota de rodapé, na mesma página, ele afirma, “De fato, Aquino chega muito próximo de dizer que qualquer troca de duas mercadorias deve ser baseada na razão da quantidade de trabalho nelas despendido.” Não está ele afirmando, aqui, que Aquino tinha uma “teoria do valor-trabalho,” quando, em apenas um parágrafo acima, ele ralhava com “certos escritores” por estes terem concluído que Santo Tomás “formulou uma teoria do valor-trabalho”?

O raciocínio do pensador liberal se torna algo confuso quando o pegamos, no início de um parágrafo, afirmando que Santo Tomás “em nenhum outro lugar expôs tão claramente a questão [do preço justo],” e ao final do parágrafo dizendo que

“essa [única] passagem [que é apenas uma estória relacionada a uma questão moral menor] destrói, com um simples sopro, a tese que tenta transformar Aquino num marxista, e prova acima de qualquer dúvida que ele considerava justo o preço de mercado.”

Então, num único parágrafo, constituído principalmente de uma estória ilustrativa sobre um comerciante que vende trigo numa cidade quando ele sabe que há mais trigo chegando, partimos de um Aquino, o Ambíguo, e chegamos a um Aquino, o Absoluto. Quando atentamos para o trecho citado por De Roover, na Secunda Secundae da Suma Theologica, descobrimos que o artigo citado não tem nada a ver com o tópico do preço justo. Ele versa sobre a questão da “trapaça” e o artigo específico tem o título “Se o vendedor é obrigado a listar os defeitos da coisa vendida.” Santo Tomás afirma aqui que um vendedor age corretamente, sob o ponto de vista da justiça, se ele meramente aceita o valor oferecido pelo comprador, sem informá-lo de que uma grande quantidade de trigo está chegando. Em outras palavras, não é injusto “não prover informação disponível” sobre o valor de curto prazo de um produto. Santo Tomás termina dizendo, “Se, contudo, ele oferecer a informação, ou se ele abaixar o preço, será extraordinariamente virtuoso de sua parte: apesar de ele não estar obrigado a isso, em nome da justiça.”[11] Dessa estória, a respeito de uma questão moral muito específica que não tem nada a ver propriamente com sistemas econômicos ou com o tópico do preço justo, De Roover tira a prova de que “Aquino apoiava a valoração de mercado ao invés do custo”[12], iniciando então uma tradição pré-capitalista na teologia moral, que deu frutos da Escola de Salamanca da Renascença Tardia[13] e nos sermões econômicos de São Bernardino de Siena e Santo Antonino de Florença no século XV.

Antes de tratar da real atitude dos escolásticos tardios em Salamanca e dos sermões de São Bernardino de Siena e de Santo Antonino de Florença, vale a pena observar uma simples réplica a uma objeção, presente na questão 77, “Sobre a trapaça, que é cometida nos atos de vender e comprar.” No artigo 1, o mesmo artigo do qual De Roover tira sua conclusão sobre as inclinações tomistas ao “mercado livre”, lemos, na réplica à Objeção 2, uma linha de raciocínio que poria, certamente, Santo Tomás, fora das fronteiras de qualquer forma do capitalismo liberal. Aqui ele cita Santo Agostinho que diz,

“o bufão, olhando para si mesmo ou para a experiência dos outros, pensava que todos os homens são inclinados a comprar por uma ninharia e vender por um alto preço. Mas como, na realidade, isso é mau, está ao alcance do poder do homem agir com justiça e resistir e vencer essa inclinação.”

O exemplo, citado por Santo Tomás, que Santo Agostinho usa para ilustrar essa idéia, é aquele do homem que paga o preço justo por um livro a um vendedor que, por ignorância, estava pedindo um preço menor por ele. Aqui vemos o comprador virtuoso, que sabe o real valor do livro, ignorando o valor de mercado do livro (aquele que estava sendo pedido pelo vendedor para aqueles que, livremente, o queriam comprar), e, justamente compensando o vendedor por sua perda. Santo Tomás conclui desse exemplo que a inclinação “capitalista” de comprar tão barato quanto possível e vender tão caro quanto possível – característica de uma inclinação pela aquisição e de um esmagador auto-interesse – pode ser vencida da mesma forma que qualquer outro vício. Ele reconhece, contudo, que essa atitude de auto-interesse – que é, precisamente, a atitude assumida pelo capitalismo liberal – é “comum a muitos que caminham no largo caminho do pecado.”[14] Aqui, vemos claramente que a atitude econômica da cristandade contrastou com a atitude econômica do neo-liberalismo. Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino não são nada neo-liberais. Claramente, o “preço de mercado” não é necessariamente o “preço justo” . Para citar uma frase comumente usada por De Roover, “Este texto ... não se presta a uma diferente interpretação.”[15]

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[1] Acho que aqui o autor queria dizer Escolástica Tardia. (N. do T.)
[2] Ver, mais recentemente, Alejandro A. Chafuem, Faith and Liberty: the economic thought of Late Scholastics, Lexington Books, New York, 2003. (N. do T.)
[3] Raymond de Roover, “The Concept of Just Price: Theory and Economic Policy”, in Journal of Economic History 18 (Dez. 1958), p. 418.
[4] Para uma visão tradicional da história e da economia da Idade Média, rejeitada como um “conto de fadas” por Raymond de Roover, cf. William Ashley, An Introduction to English Economic History and Theory, 4th ed., 2 vols. (London: Longmans, Green, 1920), I, Part II, 391; John M. Clark, The Social Control of Business, 2nd ed. (New York: McGraw-Hill Book Co., 1939), pp.23-24; Shepard B. Clough and Charles W. Cole, Economic History of Europe, rev. ed. (Boston: D.C. Heath, 1946), pp.31, 68; George Clune, The Medieval Guild System (Dublin: Browne and Nolan, 1943), p.55; Alfred de Tarde, L'idee du justeprix (Paris: Felix Alcan, 1907), pp.42-43; Joseph Dorfman, The Economic Mind in American Civilization, 3 vols. (New York: Viking Press, 1946-1949), 1,5; N. S. B. Gras, Business and Capitalism (New York: Crofts, 1939), pp. 122-123; Herbert Heaton, Economic History of Europe, 1st ed. (New York: Harper, 1936), p.204; George O'Brien, An Essay on Medieval Economic Teaching (London: Longmans, Green, 1920), pp. 111-112; Leo S. Schumacher, The Philosophy of the Equitable Distribution of Wealth (Washington, D.C.: The Catholic University of America, 1949), p.47; James Westfall Thompson, An Economic and Social History of the Middle Ages, 300-1300 (New York: Century Co., 1928), p.697. Além desses, incluído também cmo um representante dessa visão errônea da Idade Média, Arthur J. Penty, A Guildman's Interpretation of History (New York: Sunrise Turn, n.d.), pp.38-46. De Roover conclui essas notas de rodapé, dizendo: “Essa lista não está, de forma alguma, completa” [minha ênfase].
[5] Ibid., p.419. Cf. Werner Sombart, Der moderne Kapitalismus (Munich: Duncker & Humblot, 1916), I, 292-293.
[6] De Roover, Just Price, p. 420.
[7] Como fonte desta citação, De Roover cita Heinrich von Langenstein, Tractatus bipartitus de contractibus emptionis et venditionis, Part I, cap. 12, publicado em Johannes Gerson, Opera omina, IV (Cologne, 1484), fol. 191. Segundo De Roover, “Nenhuma edição mais recente está disponível.”
[8] De Roover, Just Price, p. 419.
[9] Ibid., p.420.
[10] Ibid., p.42l.
[11] St. Thomas Aquinas, Summa Theologica, II-II, Q. 77, Art. 3, ad 4.
[12] De Roover, Just Price, p.423.
[13] De novo, acho que o autor queria dizer Escolástica Tardia. (N. do T.)
[14] ST, II-II, Q. 77, Art. I, ad 2.
[15] De Roover, Just Price, p.421.

24/07/2007

Tradição do latim volta à Igreja em Belo Horizonte

Um amigo anônimo deixou o texto que se segue na seção de cartas de meu blog. Deus o abençoe.
A Capela de que fala a reportagem abaixo tem missas tridentinas no 1o. domingo de cada mês, às 10h e aos terceiros sábados de cada mês, às 17h. O telefone é 34220187. Há ainda missas pós-conciliares diariamente.



Daniel de Cerqueira e Queila Ariadne,
Jornal O tempo

"In nominu Pátris, et Fílli et Spíritus Sancti. Amen".

O latim está prestes a voltar para as missas e, quando isso acontecer, o tradicional "Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém" será assim. O papa Bento XVI publicou anteontem um decreto (Motu Próprio) para que a missa volte a ser rezada pelo antigo rito romano, com tradições mais conservadoras, entre elas, trechos em latim e cantos gregorianos.

Na capela curial Nossa Senhora da Conceição Aparecida, no bairro Ipiranga, região Nordeste de Belo Horizonte, o latim já está presente há dois anos e meio. A cada 15 dias, padres de Ouro Preto e do município fluminense de Campos vão ao local especialmente para celebrar a chamada missa tridentina, cheia de rituais para intensificar a introspecção religiosa e a fé.

O documento assinado pelo papa não estipula que as missas sejam obrigatoriamente em latim, mas dá autorização para que o antigo rito romano seja retomado pelas igrejas que quiserem, conforme explicou o padre Ivoli Fernando Latrônico.

Em 1969, a Igreja Católica passou a adotar o novo rito, por determinação do papa João Paulo VI. O Motu Próprio não é a primeira manifestação da vontade de Bento XVI de retomar a missa em latim. No início deste ano, o Vaticano publicou a exortação apostólica Sacramentum Caritatis (Sacramento do Amor) declarando o desejo de que pelo menos as missas internacionais tenham trechos em latim.

Unidade

Embora a volta do latim possa ser considerada por alguns como um retrocesso, para os fiéis que freqüentam a missa tridentina na capital, o uso da língua é aprovado. "O latim representa a sacralidade da Igreja e torna a missa única. Seja rezada no Brasil ou no Japão, não haverá tradução. O significado nunca será deturpado", afirma o gerente de recursos humanos Frederico Saviotti Azevedo, que sai de Venda Nova para assistir a missa no Ipiranga.

"Fui coroinha em uma época em que as missas ainda eram rezadas em latim e tenho muita saudade, sou a favor de que esse ritual seja expandido. Assim manifestamos melhor a nossa fé", destaca o engenheiro eletricista José Artur Silva, morador do bairro Ouro Preto, na Pampulha. Segundo o padre Ivoli Fernando Latrônico, não existe comprometimento na compreensão. Ele explica que, além de a missa não ser inteiramente em latim, o missal - folheto distribuído para os fiéis - traz a tradução. A liturgia da palavra e o Evangelho são obrigatoriamente celebrados em português.

Conforme o padre, por mais difícil que a língua possa soar, o entendimento é facilitado no contexto. "Com o passar do tempo, os fiéis vão se acostumando e aprendem o significado das palavras em latim." As missas tridentinas dessa capela acontecem todos os primeiros domingos e terceiros sábados de cada mês. A capela fica na rua João de Matos, 214, esquina com a rua Jacuí.

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DANIEL DE CERQUEIRA

Canto gregoriano é alternado com música religiosa nacional
Mulheres usam véus e não devem vestir calça

A capela é pequena e singela, mas tudo irradia muita fé. A começar pela história da fundadora, Izaltina Luíza de Lima, a dona Tina. Ela transformou a própria casa em uma igreja, com a ajuda da comunidade do bairro Ipiranga. Logo na entrada da capela curial Nossa Senhora da Conceição Aparecida, as plantas inspiram sensação de renovação.

No teto, anjos cuidadosamente pintados dão um toque especial para o clima de contemplação. As mulheres sentam-se à esquerda e os homens à direita. A regra é apenas uma recomendação, mas é respeitada pelos fiéis. Outra particularidade é o uso de véus pelas mulheres, que se vestem, preferencialmente, de vestidos e saias. Pede-se que elas não usem calça comprida, mas também não é uma imposição.

Padre

A vestimenta do padre tem uma atenção especial. Antes de começar a rezar a missa, ele veste os paramentos cuidadosamente. “Tudo isso faz parte de uma corrente mais conservadora, é um sinal de respeito”, explica o padre Ivoli Fernando Latrônico. Pelo mesmo motivo, o sacerdote reza a maior parte da missa de frente para a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo. “Não devemos falar que o padre está de costas para os fiéis, mas sim que, assim como todos os fiéis, está voltado para Deus”, destaca o padre.

Outro sinal de respeito é a forma da comunhão. Os fiéis recebem a hóstia diretamente na boca, ajoelhados. Trechos em latim são intercalados com celebrações em português, como é o caso do Evangelho. Os cantos gregorianos são alternados com os cantos religiosos nacionais. (QA)

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DANIEL DE CERQUEIRA

Assim como outras mulheres, Karla Zanon usa véu durante as missas em latim em igreja da capitalFamília vinda do Rio trouxe estilo para Minas

Os ritos da missa tridentina chegaram à capela curial Nossa Senhora da Conceição Aparecida pelas mãos de uma família: os Borgati. Em 1982, o representante comercial José Ângelo Borgati veio de Bom Jesus do Itabapoana (Rio de Janeiro) para Belo Horizonte. Lá, ele cresceu freqüentando a missa tridentina, tradicional na região. “Eu e minha família, católicos praticantes, sentíamos muita falta desse estilo e, em 1994, começamos a promover missas tridentinas nas casas dos familiares, trazendo o padre da nossa cidade, na região de Campos”, conta Borgati.

Em 2004, Borgati ficou sabendo do trabalho de uma senhora, a dona Tina, para manter a celebração com ritos mais conservadores. De um casamento de valores, nasceu a missa tridentina na capela curial Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Para a sua realização, o arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, dom Walmor de Oliveira Azevedo, deu uma autorização por escrito, chamada de direito de uso de ordem. Desde então, todos os primeiros domingos e terceiros sábados de cada mês, o capelão padre da Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Waldemar Lopes de Almeida, cede a capela para a celebração.

Três padres de Campos se revezam. Na última missa, dia 1º de julho, foi a vez do padre Ivoli Fernando Latrônico. Ele chegou a Belo Horizonte às 9h30, celebrou a missa às 10h e, por volta das 12h, pegou a estrada de volta a Campos. Hoje, aos 81 anos, dona Tina continua à frente das missões sociais da capela, sempre ajudando o próximo. Na parede de uma das salas da capela, exibe com orgulho uma carta que recebeu do papa João Paulo VI, enviando bênçãos e reconhecimento. (QA)
(destaques nossos)

18/07/2007

Religião e Sexo

G. K. Chesterton


O homem honesto que diz que deseja que o cristianismo seja meramente prático e não teórico ou teológico, raramente consegue explicar o que ele exatamente quer dizer. Essa é a razão de haver tanta repetição simplesmente verbal no que ele diz. Geralmente, os pobres teóricos e teólogos têm de explicá-lo o que ele quer dizer. De qualquer forma, ele quer dizer algo mais ou menos assim. Um número muito grande de pessoas saudáveis e bondosas é, hoje, oportunista. Todos acreditamos que devemos cortar nosso casaco de acordo com o tecido que temos, no sentido de que ninguém pode fabricar um casaco sem tecido. Mas se o costureiro me diz que todo o tecido em estoque é amarelo-mustarda brilhante, decorado com caveiras escarlates, terei de adiar o quanto puder o uso desse tecido para meu novo casaco, podendo até constranger-me, e ao costureiro, sugerindo-lhe procurar outro tipo de tecido.

Contudo, há um tipo de homem que usará prontamente o casaco amarelo pela simples existência do casaco amarelo. Ele é um oportunista num sentido diferente do meu. Há uma diferença entre um cliente que consegue o que quer, tanto quanto lhe seja possível e aquele que consegue o que não quer porque isso lhe é possível.

Em outras palavras, há uma diferença entre conseguir o que se quer, sob certas condições e permitir que as condições lhe digam o que você pode conseguir, ou mesmo o que você quer. No entanto, é possível passar pela vida sendo controlado pelas circunstâncias dessa forma. Se minha quadra de tênis for inundada, posso, claro, transformá-la num lago ornamental. Ou posso me dar o trabalho de drenar o campo e protegê-lo contra inundações, permanecendo fiel ao ideal abstrato e dogmático de uma quadra de grama. Se uma árvore cai sobre minha casa e faz um buraco no teto, posso transformar o buraco numa clarabóia e a árvore numa saída de emergência. Mas se eu não quiser uma clarabóia e uma saída de emergência, estou sendo manipulado pela árvore. E isso é uma posição indigna para um homem.

É a posição indigna da maioria dos homens modernos. Eles são oportunistas, não só no sentido de conseguirem o que querem da forma mais prática, mas de tentarem querer a coisa mais prática; isto é, meramente a coisa mais fácil. Essa é a razão de eles não entenderem a base do idealismo cristão em muitas questões e especialmente na questão do sexo. Eles estão sempre sendo desviados pelas inundações e árvores caídas, especialmente aquela árvore do conhecimento que é o símbolo da queda e que certamente fez um buraco na casa, no sentido do lar. Mas a questão aqui é que essas pessoas constroem um novo plano ou propósito sexual depois de cada eventual novo acontecimento. Quando há mais mulheres do que homens, eles começam a falar sobre poligamia. Quando há mais crianças do que é conveniente para os indivíduos criarem com um salário decente, eles começam a falar de alguns truques que são um tipo de substituto para o infanticídio.

Ninguém pode entender a teoria do sexo cristã sem entender a idéia do homem ter um plano que ele deseja impor sobre as circunstâncias, ao invés de esperar pelas circunstâncias para então ver que plano ele vai ter. O cristão deseja criar as condições para que o casamento cristão seja possível e digno em si; não aceitar qualquer coisa possível nas mais indignas condições. Porque ele o quer e o que ele realmente é, consideraremos num momento; mas é necessário tornar claro de início que o casamento cristão não é algo que nos é sugerido pelas condições sociais do nosso entorno; é algo que nos é sugerido por Deus, pela nossa consciência comum e pelo sentido de honra da humanidade em geral. E isso é o que nosso pobre amigo quer dizer quando diz que nós não somos práticos; ele quer dizer que nós não estamos sempre consertando nossa casa e alterando nosso jardim para acolher em seu interior uma árvore caída ou uma tromba d’água.

Ele quer dizer que temos um plano para nossa casa e jardim e que estamos sempre tentando restaurá-los e reconstruí-los de acordo com o plano. Não propomos rasgar o plano original e seguir uma seqüência de acidentes; até que a casa seja enterrada sob árvores caídas e os campos sejam inundados e todo o trabalho do homem seja levado pela enxurrada. Isso é o que ele entende por nossa impraticabilidade, e ele está certo.

Descrito em termos humanos, o plano é substancialmente este. Que o amor que faz a juventude bela, e é a fonte natural de tanta canção e romance, tem por objetivo final um ato de criação, a fundação da família. Ao mesmo tempo em que é um ato criativo, como o de um artista, é também um ato coletivo, como o de uma pequena comunidade. É, talvez, o único trabalho artístico em que a colaboração é um sucesso e mesmo uma necessidade. É preciso de dois para começar uma briga, especialmente uma briga de amantes. Precisa-se também de dois para estabelecer um acordo de amantes segundo o qual seu amor deve ser colocado acima da briga. Mas, por definição, o acordo dos dois não é simplesmente concernente aos dois; mas, num sentido terrível, a outros. A fundação de uma família, como todo ato criativo, é uma responsabilidade tremenda. Em outras palavras, a fundação de uma família significa a alimentação de uma família, o treinamento, o ensinamento e a proteção de uma família. É o trabalho de uma vida inteira, e muitos casamentos têm uma vida muito curta. Sua continuidade é garantida, não por “leis matrimoniais” que nossas modernas plutocracias podem criar ao seu bel-prazer, mas por um voto voluntário ou invocação a Deus feita pelas duas partes, que eles vão se ajudar nesse trabalho até a morte. Para aqueles que acreditam em Deus e também acreditam no significado das palavras, isso é final e irrevogável.

Esse ato criativo é em si um ato livre. Esse ato criativo, como todos os atos criativos, não envolve uma perda de liberdade. O homem que constrói uma casa não recupera aquele castelo que ele construiu e reconstruiu no ar quando ele estava planejando a casa. Nesse sentido, podemos dizer, se quisermos, que o homem que constrói uma casa, constrói uma prisão. Há algo de final em todo grande trabalho, mas é possível sentir nesse trabalho um tipo peculiar de finalidade. A paixão de um homem em sua juventude encontrou seu caminho verdadeiro e alcançou seu objetivo e, apesar do amor não precisar acabar, a busca por ele terminou.

Pelo teste desse objetivo e consecução, todas as coisas condenadas pela ética cristã se encaixa em seus vários níveis de erro. Prolongar a busca de uma forma sentimental, muito depois de ela ter qualquer relação com o trabalho real do homem é um erro em vários níveis; quase sempre isso não é mais que ridículo e indigno; turpe senilis amor. Permitir que a busca perambule de forma a destruir outros lares saudavelmente estabelecidos é, por essa definição, obviamente errado. Cultivar uma perversão mental que realmente remova o desejo por um ato frutífero é horrivelmente errado. Comprar um prazer estéril de uma classe estéril é errado. Manobrar cientificamente de forma a furtar o prazer sem assumir a responsabilidade pelo ato, é lógica e inerentemente errado. É como andar por aí com uma medalha sem ter ido à guerra.

Nós acreditamos, sem uma sombra de dúvida e hesitação, que onde as condições se aproximam desse ideal, a humanidade é mais feliz. Assim, o nascimento da paixão é usado com um menor grau de destruição. Assim, a morte da Paixão é aceita com um menor grau de desilusão. Um trabalho construtivo da idade adulta segue naturalmente o trabalho criativo da juventude; à paixão é dada uma extraordinária oportunidade de se perpetuar como afeição, e a vida do homem é tornada plena. Há nela tragédias, como há igualmente tragédias fora dela. Não podemos livrar a vida de tragédias sem livrá-la da liberdade. Não podemos controlar a atitude emocional dos outros nem numa condição de anarquia sexual, nem nas condições de lealdade doméstica. O amor é realmente excessivamente livre para os propósitos dos amantes livres. Mas onde os homens são treinados pela tradição a considerar esse processo normal, e a não esperar por nada diferente, há muito menos probabilidade de trágicos relacionamentos do que no amor chamado livre. Se observamos a literatura real do amor irresponsável, encontraremos um contínuo e dolorido lamento sobre falsas amantes e torturantes casos amorosos.

Em resumo, nós não acreditamos, de forma alguma, na grande felicidade prometida à humanidade pela dissolução de lealdades de uma vida toda; não sentimos o menor respeito pela retórica sentimental e grosseira com que isso nos é recomendado. Mas o resultado prático de nossa convicção e de nossa confiança é este: que quando as pessoas nos dizem – “Seu sistema não é muito inadequado para o mundo moderno,” respondemos – “Se isso é verdade, as coisas parecem bem podres no pobre e antigo mundo moderno.” Quando eles dizem – “Seu ideal de casamento pode ser um ideal, mas não pode ser uma realidade, ” dizemos – “é um ideal numa sociedade doente, é uma realidade numa sociedade saudável. Pois, onde ele é real, ele faz a sociedade saudável.” Não dizemos perfeitamente saudável, pois acreditamos em outras coisas além do casamento; como, por exemplo, na Queda do Homem. Mas a questão é que queremos o que é prático, no sentido de que queremos fazer algo, criar famílias cristãs. Mas eles só querem o que é prático, no sentido do que é mais fácil no momento.

Assim, de acordo com a teoria geral do casamento, a paixão é purificada por sua própria frutificação, quando esta frutificação é o seu dignificante e decente objetivo final. Em poucas palavras, podemos dizer que substituiríamos a meia-verdade do “amor pelo amor”, por uma verdade superior do “amor pela vida”. O amor é sujeito à leis porque é sujeito à vida. É verdade, não só metafisicamente, nem mesmo simplesmente num sentido místico, mas num sentido material, que podemos ter vida e que a podemos ter mais abundantemente. Isso não quer dizer, claro, que o amor não tenha seu próprio valor espiritual, quando honoráveis acidentes o impedem de ser frutífero. Mas isso não significa que, em geral, possamos julgar os amores dos homens por outra metáfora mística que é também um fato material e por seus frutos os conheceremos.

Tal princípio é, ou era até recentemente, compartilhado por todos os que se dizem cristãos. Há um apêndice a este princípio que é professado por todos os que se dizem católicos. É uma idéia mais mística; e talvez somente os católicos se esforçaram em defini-lo racional e filosoficamente. Não é verdade, contudo, que somente católicos já o sentiram. Os antigos pagãos já o sentiram sutilmente em suas visões de Atenas, Ártemis e das Virgens Vestais. Os agnósticos modernos o sentem debilmente em sua adoração pela inocência infantil – em Peter Pan ou no Child’s Garden of Verses. Essa idéia é a de que há, para alguns, uma felicidade ainda mais divina que a do divino sacramento do matrimônio. Este é um assunto muito especial e muito grande para ser tratado aqui; mas dois fatos deveras singulares devem, sobre ele, ser notados. Primeiramente, que os estados industriais modernos estão invocando o pesadelo da super-população, depois de terem, eles próprios destruído as irmandades monásticas que foram uma limitação voluntária e viril a esse pesadelo. Em outras palavras, eles estão, muito relutantemente, recorrendo ao controle de natalidade, depois de realmente suprimirem a prova de que os homens são capazes de auto-controle. Em segundo lugar, se tal abstenção fosse realmente exigida, essa tradição religiosa poderia dar a ela um entusiasmo positivo e poético, onde todas as outras fariam dela apenas uma mutilação negativa. Os católicos acreditam na razão e gostam de ver as coisas práticas provadas; e, atualmente, a necessidade não está provada; somente mencionada como se tivesse, como se comentassem a respeito de Darwin e Einstein. Mas, mesmo se ela estivesse provada, os católicos teriam uma resposta muito melhor do que a dos outros: as trombetas de São Francisco e São Domingos. E os bons protestantes irão finalmente concordar que a resposta é melhor do que a alternativa de um tipo de anarquia secreta e silenciosa, na qual os motivos são estreitos e os resultados nulos. E por este caminho, voltamos ao tema original do casamento ideal; e à verdade principal sobre ele. Uma coisa tão humana não irá, finalmente, desaparecer por entre acidentes de uma sociedade anormal. Essa sociedade nunca será capaz de julgar o casamento. O casamento julgará essa sociedade; e pode possivelmente condená-la.






Publicado em The Chesterton Review

15/07/2007

Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca - Parte I

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Nota do tradutor -- O texto deste artigo é longo. Eu o publicarei em oito partes, além desta introdução, seguindo a segmentação do autor. As partes são: O sonho libertário de De Roover; Os freis espanhóis e o sistema bancário renascentista; A função do dinheiro e a questão da conversão de moedas; A Escola de Salamanca e o preço justo; A complexidade do preço justo reafirmada; Bernardino de Sena e Antonino de Florença: santos mal interpretados; Santo Antonino, o preço justo e o salário justo; Restauração econômica.

Depois de todo o texto traduzido, eu o republicarei na íntegra.
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Dr. Peter Chojnowski [1]


Na economia de mercado, o indivíduo é livre para agir no âmbito da propriedade privada e do mercado. Suas escolhas são absolutas” Ludwig von Mises, Ação Humana.


Quando lemos este texto do avô do moderno Neo-Liberalismo[2] (que se manifesta, nos EUA, nos movimentos do Libertarianismo e no Neo-Conservadorismo), não nos surpreendemos. Von Mises – nominalmente um católico, mas verdadeiramente um ateu em sua filosofia política – tenta tornar absoluta a única coisa (além das “forças do mercado”) que ele parece considerar relevante para os acontecimentos humanos, a determinação volitiva dos indivíduos. Tampouco ficamos surpresos quando ele revela sua concepção básica da realidade e a aplica às ações públicas dos indivíduos. Referindo-se a todo o edifício doutrinal e moral da civilização cristã, no que toca à ação humana, e comparando-o à sua idéia do indivíduo autônomo com intenções e interesses próprios, von Mises afirma:

“instar as pessoas a ouvir a voz da própria consciência e a substituir as considerações do lucro pessoal por aquelas do bem comum, não cria uma ordem social funcional e satisfatória” [minha ênfase].[3]

Numa radical declaração, von Mises nega o Cristianismo e todo o ensinamento moral, social e econômico da Igreja Católica; esta declaração também torna “inoperante” toda a tradição moral e filosófica clássica.

Tais afirmações do herói do libertarianismo e do neo-conservadorismo contemporâneo (leia-se, neo-jacobinismo), não nos devem inquietar se as compreendemos em seu verdadeiro significado: afirmações de quem professou a moderna visão liberal e anti-cristã e denegriu a civilização, no todo e em suas partes, construída pela Igreja Católica; essa civilização, é claro, foi construída de um certo modo, na tentativa da Igreja de conformar as circunstâncias e os meios de vida do homem à Lei Eterna, que inclui o Plano Providencial, pelo qual cada criatura é levada ao estado de perfeita realização e satisfação. A cristandade, diferentemente das “forças de mercado”, pressupõe liberdade real; se o homem não fosse livre e criado para se realizar em sua liberdade, o cristianismo não seria necessário. “Liberdade” não tem sentido, e logo se torna bizarra (como em nossa própria cultura de consumo), se não está direcionada ao verdadeiro “bem” que satisfaz à natureza humana. Se a liberdade não almejar a verdadeira satisfação da natureza humana, por que ela é um “bem”? Se, contudo, a liberdade é um “bem” porque satisfaz a natureza humana, a “liberdade” econômica ou a habilidade de vender e comprar bens, deve estar subordinada às considerações gerais sobre o “bem”. Como estamos falando do “bem” público, devemos falar do “bem comum”, no qual o bem privado esta incluído. O bem comum tem como conseqüência a realização da natureza humana em geral. Se todo esse raciocínio é válido, a liberdade econômica de vender e comprar deve estar ordenada no sentido de se alcançar a verdadeira realização da natureza humana, tanto individual quanto publicamente.

Somente aqueles com as mais animalescas concepções do homem poderiam pensar que a habilidade de comprar e vender coisas é um ponto em torno do qual deve girar a vida individual, uma ideologia política ou os esforços do Estado. Que “o homem não vive só de pão” não é somente uma verdade religiosa, mas é, também, uma parte da sabedoria que é verificada pela experiência humana universal. A devoção religiosa do homem, suas ações morais virtuosas e sua expressão e apreciação estética e emocional é que são os aspectos superiores do ser humano que o comércio deve sustentar e facilitar. À luz disso, é perfeitamente racional que as sociedades e governos normais e tradicionais (i.e., não-liberais) do passado tentaram assegurar que as compras e vendas que se davam entre os homens, verdadeiramente, facilitassem o fim genuíno de todo o relacionamento econômico: o completo e total bem do homem, tanto como indivíduo quanto como um componente do corpo cívico em geral. Foi por essa razão que noções tais como “salário justo” e “preço justo” eram normativos, e as limitações a respeito do uso e aquisição de propriedade privada foram instituídas.

No entanto, há um ponto a favor de Ludwig von Mises – não compartilhado por muitos de seus discípulos. É que ele reconhecia que todo o cristianismo histórico, na teoria e na prática, era contra sua concepção da ordem apropriada das coisas. Ele, pelo menos, reconhecia que havia um conceito muito definido de “justiça” no cristianismo medieval. Ele simplesmente o considerava relativo. De uma forma puramente nietzscheana, ele insistia que as alegações sobre a “justiça” deste ou daquele arranjo social ou condição econômica, são meramente uma tentativa, de alguns, de preservar uma “utopia” arbitrariamente adotada.

“Eles chamam ‘justo’ aquele modo de conduta que é compatível com a preservação de sua utopia e tudo o mais, injusto.” [4]

Von Mises, também, não alegava que Santo Tomás de Aquino era um apoiador avant la lettre do capitalismo liberal ou da “economia de mercado”. Ele compreendia que Santo Tomás, como um filósofo e teólogo católico, tinha visões profundamente diferentes das suas, inclusive em matéria de economia. No que diz respeito à questão do “preço justo”, von Mises escreve:

“Se a doutrina de Tomás de Aquino sobre o preço justo tivesse sido posta em prática, a situação econômica do século XIII ainda prevaleceria entre nós. A população seria muito menor e o padrão de vida, muito mais baixo.” [5]

A sentença seguinte deve também interessar a quem deseja perceber a distinção aguda entre o liberalismo de von Mises e a grande tradição do mundo cristão:

“Ambas as doutrinas do preço justo, a filosófica e a popular, concordam em sua condenação dos valores de preços e salários determinados por mercados livres.” [6]

Se Aquino era um capitalista pré-liberal, von Mises certamente não percebeu; de fato, ele usou os ensinamentos de Santo Tomás como modelo da própria mentalidade e perspectiva que ele estava rejeitando.
[1] Este artigo foi publicado na revista The Angelus Magazine, em 2005, sob o título Corporation Christendom: The True School of Salamanca. Esta tradução foi feita com a autorização da revista.
[2] Sobre a dívida do Neo-liberalismo para com Ludwig von Mises no período pós-guerra, ver Erik von Kuehnelt-Leddihn, Leftism Revisited: From De Sade and Marx to Hitler and Pol Pot, no capítulo intitulado “Real Liberalism” (Washington, D.C.: Regnery Gateway, 1990), p. 180.
[3] Ludwig von Mises, Human Action: A Treatise on Economics (New Haven, CT: Yale University Press, 1949), p. 276.
[4] Ibid., p. 728
[5] Ibid.
[6] Ibid., pp. 728-729

07/07/2007

Motu Proprio - Missa de São Pio V

Saiu, hoje (07/07/07), o Motu Próprio SUMMORUM PONTIFICUM (clique aqui para a versão em latim) que reinstitui a Missa de São Pio V. Que Deus abençoe Bento XVI!

In Corde Jesu, semper.

Opondo-se à heresia austríaca

Christopher Ferrara


Nota do tradutor – Este artigo foi publicado na revista The Angelus Magazine, em janeiro de 2005, sob o título Oposing the Austrian Heresy. Esta tradução foi feita com a autorização da revista.



Tenho o privilégio de prefaciar o artigo do Dr. Peter Chojnowski “A Corporação Cristã: a verdadeira Escola de Salamanca”,[1] que expõe primorosamente como o ensinamento de Santo Tomás de Aquino, dos santos Bernadino de Siena e Antonino de Florença e da Escolástica Tardia espanhola sobre preços e salários justos foram distorcidos pelos proponentes da Escola Austríaca de Economia.

O artigo do Dr. Chojnowski é um importante primeiro passo na elaboração de uma resposta católica tradicional às ambições crescentes da escola Austríaca, cujos dois maiores ‘santos’, os já falecidos pensadores judeus Ludwig von Mises e Murray Rothbard, escreveram as obras fundamentais do movimento austríaco: o volumoso “Ação Humana” (1949) de Mises e o igualmente volumoso “Homem, Economia e Estado” (1962) de Rothbard. Esses dois livros compreendem o Velho e o Novo “Testamento” do que vem a ser hoje o culto de um radical laissez faire econômico, que, lamentavelmente, atrai um crescente número de católicos.

UM CULTO DO LAISSEZ FAIRE

Não uso levemente a expressão “ambições crescentes” ou a palavra “culto”. O Mises Institute, fundado para pregar ao mundo o evangelho da “liberdade” econômica e social, festeja o sucesso do movimento em termos quase messiânicos. O Instituto – dirigido por um católico, Lew Rockwell – recentemente declarou:

“Temos sido marcantemente eficazes em construir um movimento global pela liberdade e para sua fundamentação intelectual. Atualmente, austríacos e libertários formam um movimento mundial coeso, unido por princípios, publicando como nunca antes, e ensinando a todos, por todos os meios disponíveis. Por essa razão, a Escola Austríaca tem sido considerada o movimento intelectual mais coerente e ativo desde o Marxismo.”[2]

O tributo do Mises Institute a Rothbard, no décimo aniversário de sua morte, tem o sabor de uma idolatria:

“E então, ao querido Murray, nosso amigo e mentor, o vice-presidente do Mises Institute, o scholar que nos guiou e o cavalheiro que nos mostrou como encontrar contentamento no confronto com o inimigo e na propagação da verdade, os funcionários e acadêmicos do Instituto oferecem este tributo, acompanhados dos milhões que têm se alimentado de suas idéias. Que suas obras estejam sempre disponíveis a todos aqueles que se disponham a aprender sobre a liberdade e fazer sua parte na luta pela própria pedra fundamental da civilização. Que seu legado permaneça para sempre [!] e que todos nós nos tornemos guerreiros pela causa da liberdade.”[3]

Céus e terra passarão, mas as palavras de Rothbard não passarão.

QUE TIPO DE TOMISTA É ESTE?

Rothbard privou da amizade de muitos católicos ao longo da vida, mas evidentemente não foi convertido por nenhum. Ele se considerava um “neo-tomista” por causa de sua noção particular e secularizada de “direitos naturais”, que não incluía nenhuma origem divina. Rothbard (e outros austríacos) tentaram impingir essa versão de direitos naturais como algo sancionado pelos escolásticos espanhóis, mas é claro que nenhum filósofo escolástico alguma vez afirmou que poderia haver direitos naturais sem um divino Juiz para dar a estes a força de lei natural, que é a participação inata do homem na lei eterna. Não pode haver direitos sem um juiz, nem lei sem um provedor da mesma. E se não há um Criador divino que dota o homem de uma determinada natureza, que sentido há em se falar de “natureza” humana e de direitos “naturais”? O “ensinamento” de Rothbard atribuindo a Santo Tomás e a Suarez a afirmação da “absoluta independência da lei natural de questões sobre a existência de Deus ...”[4] não é apenas vulgar; é claramente contraditório.[5]

A teoria do direito natural de Rothbard estava limitada à (inexistente) “propriedade” do próprio corpo e a propriedade privada relacionada à apropriação primeira de recursos ainda não apropriados.[6] Como esses eram os dois direitos naturais que Rothbard reconhecia como universalmente válidos, ele (como o utilitário ortodoxo Mises) limitava o poder do governo somente à proteção desses direitos. Assim, ele definia “liberdade” como “a ausência de invasão, por outro homem, da pessoa ou propriedade de um indivíduo”[7]

Baseado nesse conceito de direitos naturais e liberdade, cuja diferença do ensinamento católico não necessita demonstração, o “querido Murray” advogava não somente o direito legal ao aborto, mas também o direito de se vender o próprio filho (i.e., de vender a propriedade dos direitos paternos), ou, se se prefere, de deixar que uma criança morra de fome. Este “direito”, escreveu Rothbard, “nos permite resolver questões incômodas do tipo: deve o pai deixar um bebê deficiente morrer (e.g., não o alimentando)? A resposta é, claro, sim ...”[8] Rothbard estava certo, no entanto, de que “numa sociedade libertária, a existência de um mercado livre de bebês trará tal ‘negligência’ a um mínimo.”[9] Essas idéias do “querido Murray” são anunciadas em sua “Ethics of Liberty”, que o Sr. Rockwell promove como parte “do núcleo”, e um dos dez mais importantes volumes, da literatura austríaca.[10]

LIBERTANDO OS PREÇOS E SALÁRIOS DAS RÉDEAS DA MORALIDADE

O trabalho do Dr. Chojnowski, demonstrando que os austríacos não apresentaram com precisão o ensinamento escolástico sobre preço e salário justos, é muito mais do que simplesmente um trabalho estritamente acadêmico. Como ele próprio observa, Mises (e, mais ainda, Rothbard) advoga uma ordem social que nega a cristandade e todo ensinamento moral, econômico e social da Igreja Católica e também torna “inoperante” toda a tradição clássica moral e filosófica.

Dr. Chojnowski está aqui se referindo a uma verdade fundamental da existência humana, afirmada pelo homem ocidental desde o tempo dos filósofos pagãos até os grandes papas anti-liberais do século XIX e início do século XX: i.e., que o homem tende, pela sua própria natureza, a viver em sociedade sob um governante comum e sob um conjunto de leis, e que esse arranjo, chamado Estado, é necessário não somente para a manutenção da paz, mas também para se atingir a virtude, que significa “se tornar tão igual a Deus quanto é possível ao homem”[11] Como declarou o Papa Leão XIII em Libertas, sua monumental encíclica sobre a natureza da liberdade humana:

“Era isso o que vira claramente a filosofia antiga, aquela principalmente cuja doutrina era que ninguém é livre como o sábio, e que reservava, como é sabido, o nome de sábio àquele que se tivesse acostumado a viver constantemente segundo a natureza, isto é, na honestidade e na virtude.”[12]

O sistema misesiano-rothbardiano, indo além até dos revolucionários franceses e da Declaração dos Direitos do Homem, rejeita completamente o conceito de Estado. Como diz Rothbard em Ética para a Liberdade:

“O grande fracasso da teoria do direito natural – de Platão e Aristóteles, passando pelos tomistas, chegando a Leo Strauss e seus seguidores em nossos dias – é ser profundamente estatista ao invés de individualista.”

Ou seja, a tradição ocidental está inteiramente errada e o “querido Murray” está certo. Na esteira de Rothbard, muitos (senão a maioria) dos austríacos contemporâneos não limitariam o poder do Estado a uma mera prevenção da violência e do roubo (a la Mises), mas aboliriam o Estado completamente a favor de uma Utopia de uma comunidade “anarco-capitalista”, na qual a ordem social é mantida inteiramente por companhias de seguro[13] e outras agências privadas contratadas. Como o estudioso libertário Ralph Raico explica:

“Os economistas austríacos contemporâneos, seguindo os passos de Mises, têm, em sua maioria, adotado uma forma mais radical de liberalismo. Pelo menos um deles, Murray Rothbard ... foi ainda mais longe em seu anti-estatismo. É, em grande medida, devido à ‘pregação e ensinamento’ de Rothbard ... que o austrianismo está associado, na mente de muitos, com a defesa do livre mercado e a propriedade privada a ponto da própria abolição do estado, e assim do total triunfo da sociedade civil ...”[14]

Assim, marxistas e austríacos prevêem um definhamento do Estado, apesar de chegarem à terra dos seus sonhos por caminhos opostos: um por meio da abolição da propriedade privada, o outro pela exaltação da mesma como summum bonnum da política (mesmo se, como concede Rothbard, a “ética pessoal” possa ter um objetivo mais alto em vista) .

Sob este ponto de vista, as tentativas dos austríacos de caracterizar os escolásticos como proto-austríacos, um empreendimento iniciado por Rothbard, é altamente significativo. O objetivo aqui é nos convencer de que é perfeitamente católico acreditar que “o preço do mercado é o preço justo” sem maior inquietação moral, e que isso é verdade sempre e em todo o lugar, tanto com relação a salários quanto em relação aos bens. Aceitar esse dictum é, claro, rejeitar o magistério de sete papas consecutivos, tanto pré como pós-conciliares, que afirmaram o oposto com relação ao salário justo: Leão XIII, São Pio X, Pio XI, Pio XII, João XXIII, Paulo VI e João Paulo II insistiram exatamente que “o salário de mercado” e o salário justo não eram moralmente equivalentes, uma vez que o empregador é obrigado moralmente a pagar, toda vez que as condições assim o permitirem, um salário que seja suficiente para o sustento do empregado e de sua família, independente do que supostamente dita “o mercado”. Como diz o Papa Leão na encíclica Rerum Novarum [Em: “Documentos da Igreja: documentos de Leão XIII”, editora Paulus, § 61, p.449]:

“Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem inclusive a acordar na cifra do salário: acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado. Mas se, constrangido pela necessidade ou forçado pelo receio de um mal maior, aceita condições duras que por outro não lhe seria permitido recusar porque lhe são impostas pelo patrão, é claro que sofre uma violência contra a qual a justiça protesta”.

Como diriam os austríacos, os escolásticos espanhóis compartilhavam [com os austríacos] a teoria de que os valores dos preços e salários surgem da soma total de avaliações subjetivas de utilidade das partes interessadas em fazer negócio (i.e., o que cada parte pensa que vale, para ela, o bem ou serviço a ser adquirido, em termos de suas necessidades e desejos pessoais), e não de fatores objetivos tais como; custo e lucro razoável, o que é necessário para manter certo padrão de vida, ou o valor intrínseco de um bem. Como mostra o Dr. Chojnowski, contudo, os próprios escritos austríacos admitem (ou pelo menos, revelam involuntariamente) que os escolásticos não ensinaram esse ponto de vista absolutista. Ao contrário, como o renomado economista e católico tradicional, Heinrich Pesch, S.J., observa no quinto volume de seu tratado enciclopédico sobre Economia, Lehrbuch der Nationalokonomie, o ensinamento escolástico sobre o preço justo envolve “uma combinação de fatores ‘objetivos’ e ‘subjetivos’, na medida em que eles exercem uma influência decisiva na formação dos preços.” Esses fatores incluem não somente utilidade subjetiva, mas também “a capacidade qualitativa dos bens em satisfazerem os desejos humanos”, e, muito desastroso para a alegação austríaca, “a estimativa geral [objetiva] e o valor oficialmente determinado do preço” de acordo com a prática legal comum, nos tempos medievais, de tetos de preços fixados pelo príncipe, especialmente para os bens necessários à vida. [15] De fato, mesmo na questão dos salários, os escolásticos espanhóis estavam, em geral, de acordo como o magistério papal posterior de que no mercado de trabalho “a compulsão era possível devido à desvantagem em poder de barganha entre empregado e empregador” e que “o conluio advindo de acordos no mercado de trabalho pode exigir um observador imparcial externo para estabelecer o salário justo, propriamente mantido por instrumento legal”[16] – não exatamente música para os ouvidos austríacos.

Por que a insistência austríaca sobre a teoria da utilidade subjetiva exclusiva e o resultante “acordo livre” como o único critério para preços e salários justos? Por que os austríacos defendem seriamente Scrooge [referência ao personagem sovina de A Christimas Carol de Charles Dickens][17] e a prática do aumento absurdo de preços durante situações de emergências, [18] quando a voz da consciência em todos os homens razoáveis grita “ultrajante” e “injusto”? A resposta é que se não há padrão objetivo no preço ou salário justo, e se eles são – em cada caso, sempre e em todo o lugar – simplesmente o preço do mercado, então o mercado se torna totalmente “auto-regulatório” e assim imune à correção moral de seus abusos pela Igreja ou pela autoridade pública. Se o preço justo é nada mais que o preço do mercado, então, muito convenientemente, o mercado nunca falha em atingir a justiça assim definida. Isso significa que a maravilhosa capacidade “auto-regulatória” do mercado pode então ser citada a favor de uma sociedade integralmente de livre-mercado, baseada no “princípio do mercado”, no qual a ação humana em geral é livre de toda norma “externa” imposta por lei, exceto aquelas que governam a troca econômica: i.e., a ausência de violência e roubo. Como argumenta Rothbard, numa passagem carregada de eloqüente terminologia:

“Toda vez que uma troca unitária livre e pacífica ocorre, o princípio do mercado foi posto em operação; toda vez que um homem força uma troca pela ameaça de violência, o princípio hegemônico foi posto em operação.Todas as interações sociais são uma mistura desses dois elementos primários. Quanto mais prevalece o princípio do mercado na sociedade, maior serão a liberdade e a prosperidade da sociedade. Quanto mais abundante for o princípio hegemônico, maior a extensão da escravidão e da pobreza ...”[19]

A HERESIA AUSTRÍACA

O esforço para “batizar” o que tem sido corretamente chamado (num sentido geral, não-canônico) “a heresia austríaca” somente nos levaria a uma forma “purificada” da mesma ordem social condenada por todos os papas de Pio VI a Pio XII. Na concepção dos fieis católicos, contudo, Murray Rothbard não tinha a menor idéia do que “liberdade” significa e não era nenhuma autoridade para ensinar ao mundo a respeito da verdadeira natureza da liberdade social. A verdade integral sobre a liberdade social é encontrada somente no ensinamento do Magisterium, que num único parágrafo contém mais sabedoria do que em todo o inflado corpus de economia política austríaca. Como ensinou o papa Leão, na encíclica Libertas Paestantissimum:[20]

“Por onde se vê que é absolutamente na lei eterna de Deus que é mister buscar a regra e a lei da liberdade, não somente para os indivíduos, mas também para as sociedades humanas.[ §11]
“Portanto, na ordem social, a liberdade digna desse nome não consiste em fazer tudo o que nos apraz. Isso geraria confusão e desordem, uma perturbação que conduziria à opressão. A liberdade consiste em que, com o auxílio das leis civis, possamos mais facilmente viver segundo as prescrições da lei eterna.[ §12]
“O que acaba de ser dito da liberdade dos indivíduos, é fácil aplicá-lo aos homens que a sociedade civil une entre si; o que a razão e a lei natural fazem para os indivíduos, a lei humana, promulgada para o bem comum dos cidadãos, o realiza para os homens que vivem em sociedade”[ §19]

Leão XIII descreve aqui, com maravilhosa precisão, o único conceito de liberdade social a que os católicos devem aderir. Não nos enganemos com o argumento de certos católicos austríacos de que o conceito de liberdade social da Igreja está, hoje, desatualizado e que devemos nos conformar aos “fatos”. Falando exatamente desse tipo de católico liberal, Pio XI declarou:[21]

“Quantos, com efeito, admitem a doutrina católica sobre a autoridade civil e o dever de lhe obedecer, sobre o direito de propriedade, os diretos e deveres dos operários da agricultura e da indústria, as relações dos Estados, as relações entre operários e patrões, entre os poderes religioso e civil, ..., os direitos de Cristo, Criador, Redentor e Senhor, sobre todos os homens e sobre todos os povos? E estes mesmos, nos seus discursos, nos seus escritos e na prática de sua vida, procedem exatamente como se os ensinamentos e as ordens promulgadas em tantas ocasiões pelos soberanos pontífices especialmente por Leão XIII, Pio X e Bento XV, tivessem perdido o seu primitivo valor ou não devessem ser tomados em consideração.”

Finalmente, podemos responder a esses modernistas sociais, que sugerem um compromisso do ideal católico, citando contra este a própria exortação de Rothbard sobre nunca abandonar o “idealismo radical”:[22]

“O economista F.A. Hayek, apoiador do mercado livre mas, em nenhum sentido, um extremista, escreveu eloqüentemente sobre a importância vital, para o sucesso da liberdade, em se considerar a ideologia pura e ‘extrema’, em suspenso, como um credo a ser sempre lembrado. Hayek escreveu que uma das grandes atrações do socialismo foi a contínua lembrança de seu objetivo ‘ideal’, um ideal que permeou, deu forma e guiou as ações de todos os que lutaram para alcançá-lo ... Hayek está aqui enfatizando uma verdade importante e uma importante razão para reafirmar o objetivo último: o entusiasmo e a vibração que um consistente sistema lógico pode inspirar.”

Os católicos podem certamente subscrever o sentimento de Rothbard em “manter” seu próprio “credo a ser sempre lembrado” em se tratando da verdadeira liberdade. O credo da liberdade a ser encontrado na doutrina que foi confiada aos católicos, não o foi por pensadores liberais judeus, mas pela Igreja que Deus Encarnado fundou para fazer discípulos em todas as nações. Devemos agradecer ao Dr. Chojnowski por se opor àqueles, incluindo católicos mal orientados, que estariam defendendo outro ideal para a sociedade humana.


O sr. Ferrara é presidente e principal conselheiro da Associação Americana de Advogados Católicos, uma organização dedicada a defender os direitos civis de católicos. O próximo livro do Sr. Ferrrara, Liberty, the God that Failed: The Chrch´s Answer to Social and Economic Liberalism, será publicado em Junho.


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[1] A ser traduzido proximamente por este blog. (N. do T.)
[2] “Mises Institute Supporters Summit: Radical Scholarship, http://www.mises.org/upcomingstory.asp?control=68 .”
[3] “The Unstoppable Rothbard,” 7 de janeiro de 2007.
[4] Rothbard, The Ethics of Liberty (Bew York, New York University Press, 2002), p. 4.
[5] Como observa Pe. Copleston, Suarez certamente ensinou que “Deus é, de fato, o autor da lei natural; pois Ele é o Criador e Ele deseja que os homens observem os ditados da justa razão.” History of Political Philosophy, Vol. III, p. 385. Sem a vontade divina, a lei natural e os direitos naturais não podem existir, pois o que obrigaria o homem a observar os “direitos naturais” dos outros se não há Deus para impor essa obrigação? Os escolásticos tardios meramente enfatizaram a bondade intrínseca da lei natural contra o nominalismo de Guilherme de Occam, que afirmava que a validade da lei natural dependia somente da vontade arbitrária de Deus, que podia, se assim desejasse, tornar o assassinato um direito natural.
[6] Ethics of Liberty, p. 43.
[7] Ibid., p. 42.
[8] Ibid.
[9] Ibid.
[10] Ver ("Ten Must Haves") http:// www.mises.org/store/category.asp7Customer ID= 848567 &ACBSessionID= euoZXmrhabgTmkMTw5DX&SID=2&Category JD=10; ("The Core") http://www.mises.org/ Study Guide Display.asp?SubjID=116. Como todos os liberais doutrinários, Rothbard admitia que o aborto e o assassinato de filhos por privação de comida eram comportamentos errados moralmente de acordo com a “ética pessoal”, mas ele insistia que o Estado não tinha o direito de proibir tal conduta.
[11] Copleston, A History of Philosophy, Vol.1, p.218 (a respeito da definição de Platão sobre a busca da virtude).
[12] Libertas Praestantissimum, §6. [Uso aqui o trecho correspondente da versão em português da referida encíclica. Em: “Documentos da Igreja: documentos de Leão XIII”, editora Paulus, § 13, p.316]
[13] Ver, e.g. Hans Hermann Hoppe, Democracy: The God that Failed (New Brunswick, NJ: Transaction Publishers, 2004), p.247: "Existe um acordo amplo entre os liberal-libertários tais como Molinari, Rothbard… tanto quanto entre muitos comentaristas do assunto, que defesa é uma forma de seguro e que o gasto com defesa representa um tipo de prêmio de seguro … muito provavelmente os candidatos a oferecerem serviços de proteção e defesa [em lugar do governo] são as companhias de seguros. "
[14] Ralph Raico, "The Austrian School and Classical Liberalism," em: mises.org/etexts/aus-trian liberalism.asp.
[15] Heinrich Pesch on Solidarist Economics, Excerpts from the Lehrbuch der Nationalokonomie (Oxford: University Press of America, 1998), p.218.
[16] Ibid., p.475
[17] Michael Levin, "In Defense of Scrooge," Dec. 18, 2000, at http://www.mises.org/ fullstory.aspx?control=573.
[18] John R. Lott, Jr., "Especially During Disasters," http://www.lewrockwell.com/lott /Iott29.html. Lott não é, aparentemente, um austríaco formal, mas seus argumentos, publicados no principal website austro-libertário, são típicos dessa escola.
[19] Murray Rothbard, Power and Market, Online Edition, p. 1363.
[20] [20] Libertas Praestantissimum, [Em: “Documentos da Igreja: documentos de Leão XIII”, editora Paulus].
[21] Ubi Arcano Dei, §51[Em: “Documentos da Igreja: documentos de Pio XI”, editora Paulus].
[22] "The Case for Radical Idealism," lewrockwell.com, Jan. 3, 2005.