03/01/2006

A Neurociência Refuta o Livre-Arbítrio?

Lucretius
___________________________________________________________________
Essa é a maravilhosa tolice do mundo: quando as coisas não nos correm bem - muitas vezes por culpa de nossos próprios excessos - pomos a culpa de nossos desastres no sol, na lua e nas estrelas, como se fossemos celerados por necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e traidores pelo predomínio das esferas; bêbedos, mentirosos e adúlteros, pela obediência forçosa a influências planetárias, sendo toda nossa ruindade atribuída à influência divina...

William Shakespeare
___________________________________________________________________

No trecho acima de Rei Lear encontramos uma descrição daqueles que, através da história humana, negam o livre-arbítrio e a responsabilidade pessoal, culpando de suas falhas as intervenções divinas e planetárias. Num recente artigo, Joshua Greene e Jonathan Cohen se somam aos crentes da “influência divina” [1]. Como esta é a era científica e nossos autores são neurocientistas de carteirinha, a influência divina se torna a influência da neurociência, o cérebro fazendo o papel das estrelas celestes.

O ímpeto divino de seu argumento é que não temos livre-arbítrio porque existe a neurociência, apesar de nossas leis ainda não levá-la em conta: “... o suporte intuitivo do sistema legal é, em última instância, fundamentado em uma noção excessivamente ambiciosa e libertária de livre-arbítrio que é questionada pelo determinismo e, de maneira mais marcante, pela nascente neurociência cognitiva ... O efeito líquido desse influxo de informação científica será a rejeição do livre-arbítrio como concebido ordinariamente, com importantes ramificações no Direito” [2].

Quais são essas ramificações? Para começar, o conceito de responsabilidade pessoal está obsoleto. Como todas as ações são determinadas pelo “estado preexistente do universo”, não temos escolha. Como eles explicam: “Dado um conjunto de condições prévias no universo e um conjunto de leis físicas que governam completamente a forma com que o universo evolui, há somente uma maneira para as coisas procederem.” Então, podemos, logicamente, referenciar, retroativamente, tudo ao Big Bang que pariu o universo. Se você me perguntar, por exemplo, porque eu comi pão ao invés de banana, hoje, no meu café da manhã, posso me referir à teoria do Big Bang sobre a ação humana.

Mas, se já existe o Big Bang, por que precisamos da neurociência para nos revelar nossa falta de livre-arbítrio? De acordo com Greene e Cohen, por séculos, os filósofos “científicos”, ou seja, os filósofos do seu campo determinista, têm argumentado contra o livre-arbítrio, mas pelo fato da mente ter sido, até então, uma caixa-preta, era fácil para o povo – iludido pela religião – para os humanistas “soft” e para outras almas lerdas, se agarrarem à ilusão do livre-arbítrio. Agora, que temos a neurociência, a mente não é mais uma caixa-preta – já é tempo para o resto de nós acordar de nosso sono dogmático e sentir o perfume do universo determinístico. Em resumo, enquanto o Big Bang nos dá a visão global, a neurociência nos fornece os detalhes que mostrarão com clareza abundante, mesmo ao público leigo, que somos afinal e literalmente, marionetes no universo determinístico.

Culpe o Cérebro

Greene e Cohen argumentam que nossos cérebros são responsáveis por todo o nosso comportamento. Nossos cérebros cometem crimes. “Nós” somos inocentes. Assim, em outras palavras, “demonstrar que há um fundamento cerebral para as transgressões dos adolescentes nos permite culpar seus cérebros, ao invés, deles próprios”. Felizmente, os garotos da vizinhança não leram o artigo, pois nele se encontra a defesa pelo estrago de sua propriedade: eu não fiz nada, foi meu cérebro!

Apesar de ser conhecido, mesmo antes de Platão, que o cérebro desempenha um papel fundamental no comportamento, esse argumento particular é, de fato, novo. Uma razão que impede que outros sejam intrépidos o suficiente para desenvolver ainda mais o argumento (apesar da eterna insistência a favor do determinismo) é que ele contém um erro categórico óbvio. Greene e Cohen comparam duas fontes de ação opostas – seu cérebro e você – como se elas fossem mutuamente exclusivas, como se, sem seu cérebro, você pudesse ser, ainda, um agente moral.

Como resultado desse erro, Greene e Cohen concluem, “a idéia de distinguir os culpados verdadeiros daqueles que são meras vítimas das circunstâncias neurológicas parecerá, a nosso ver, sem sentido”.

Mas o agente moral, no sentido legal, é o pacote completo – você, consistindo de seu cérebro e do resto. Dizer que somos vítimas de circunstâncias neurológicas é o mesmo que dizer que somos vítimas de nós mesmos. A suposição fundamental é a de que não temos controle sobre as “circunstâncias neurológicas” , tal como não temos controle sobre as “circunstâncias externas”. Mas essa suposição (suposição behaviorista em nova embalagem) contradiz, inteiramente, nosso conhecimento de que o cérebro é um sistema biológico auto-organizado e auto-regulado e não, meramente, uma etapa na transformação de algum estímulo externo numa saída comportamental. Não é necessário, entretanto, discutir o cérebro, em nenhum nível de detalhe, para refutar Greene e Cohen, pois, seus argumentos não são, absolutamente, baseados em algum conhecimento sobre o cérebro. A lógica primitiva ensina que, por exemplo, se eu roubo sua carteira, são as minhas mãos que devem ser cortadas.

Sr. Marionete

Para ser justo, Greene e Cohen perceberam que culpar o cérebro por tudo não é suficiente. Eles têm outra arma escondida contra o livre-arbítrio, um outro “experimento mental”. Pois, sua estratégia é gerar tantos argumentos contra o livre-arbítrio quantos eles puderem, na esperança de que alguns deles farão estragos suficientes, mesmo que esses argumentos se contradigam uns aos outros.

Em sua segunda tentativa, eles insistem em que imaginemos o caso de “Sr. Marionete”, um criminoso projetado por um grupo de cientistas, sob um rígido controle genético e ambiental. Durante o julgamento do Sr. Marionete, o cientista-chefe é chamado como testemunha de defesa. E aqui está a sua fala, de acordo com Greene e Cohen:
Eu o projetei. Cuidadosamente selecionei cada gene em seu corpo e projetei cada evento significante em sua vida, de forma a torná-lo, exatamente, o que ele é hoje. Selecionei sua mãe, sabendo que ela o deixaria chorar por horas, antes de pegá-lo no colo. Selecionei, cuidadosamente, cada um dos parentes, professores, amigos, inimigos etc., e os disse, exatamente, o que dizer a ele e como tratá-lo. As coisas, de um modo geral, aconteceram como o planejado, mas não sempre. Por exemplo, as cartas iradas escritas ao seu falecido pai não estavam planejadas até que ele tivesse catorze anos, mas antes do seu décimo terceiro ano de vida, ele já tinha escrito quatro delas. Em retrospecto, penso que isso é devido a algumas poucas substituições que fiz em seu oitavo cromossomo.

É claro que uma mudança num cromossomo não pode determinar o momento da formulação de uma carta malvada, pois o genoma não contém informação que especifique qualquer de nossas ações. A regulação ambiental é, também, impossível, exceto na ficção científica. Mas, plausibilidade ou conhecimento da biologia básica não podem ser esperados de nossos autores. Greene e Cohen acreditam que o Sr. Marionete não é responsável por suas ações, porque “forças além de seu controle desempenharam um papel dominante no cometimento de seus crimes, sendo difícil pensar que ele seja algo mais que um fantoche.”

Mas, mesmo assumindo, só para argumentar, que tal pessoa poderia ser assim projetada, devemos concluir que ele é, de fato, uma marionete do cientista-projetista, enquanto que nós não somos marionetes desse tipo. Nossos genes não são selecionados, nem nosso ambiente é projetado, por alguém.

Naturalmente, contudo, Greene e Cohen chegam a uma conclusão, completamente, diferente: “Qual é a diferença entre o Sr. Marionete e qualquer acusado de um crime? Afinal, temos poucas razões para duvidar que (i) o estado do universo 10.000 anos atrás, (ii) as leis físicas e (iii) os resultados dos eventos quânticos aleatórios são, juntos, suficientes para determinar tudo que acontece hoje, incluindo nossas próprias ações. Essas coisas estão, claramente, além de nosso controle. Então, qual é a real diferença entre nós e o Sr. Marionete? ... num sentido muito real, somos todos marionetes. Os efeitos combinados dos genes e do ambiente determinam todas as nossas ações. O Sr. Marionete é excepcional apenas na medida em que as intenções de outros seres humanos estão por trás de seus genes e de seu ambiente. Mas, isso não importa, uma vez que seus genes e seu ambiente são, intrinsecamente, comparáveis àqueles das pessoas comuns. Não somos mais livres que ele.”

Num aparente escorregão, eles reconhecem que os cientistas tiveram intenções, que eles deliberadamente agiram no projeto do Sr. Marionete. Suas ações, aparentemente, diferem das causas que não são ações humanas. Greene e Cohen nunca se preocuparam em perguntar se esses cientistas deviam ser punidos por projetarem, especificamente, alguém para cometer crimes, se eles são os responsáveis, afinal. Mas, se somos forçados a aceitar esse cenário, então, a responsabilidade pelos crimes parece ser dos cientistas – por projetarem marionetes criminosas.

De acordo com Greene e Cohen, no entanto, os genes e o ambiente do Sr. Marionete são “intrinsecamente comparáveis” àqueles das pessoas comuns, como se vivêssemos todos num ambiente projetado, no qual as pessoas, deliberadamente, abusassem de nós e nos mentisse; como se nossos genes, ao invés de serem resultados da seleção natural, fossem escolhidos por um time de cientistas do mal. Intrinsecamente comparáveis? Por isso eles, presumivelmente, querem dizer que o ambiente é ainda um ambiente terreno como o nosso, – a mesma casa com mobília, aparelho de TV e pais etc. – e os genes são, ainda, cadeias de DNA feitas de férteis nucleotides. Mas, claramente, essas características “intrínsecas” são irrelevantes no caso do Sr. Marionete. Seus genes e seu ambiente são, afinal, projetados para torná-lo um criminoso. Mas note, em particular, a ênfase peculiar de Greene e Cohen na combinação de genes e ambiente. A Biologia, é claro, nos diz que há fatores adicionais que não são nem genéticos nem ambientais, mas, podemos, seguramente, supor que esses autores, não possuindo nenhum interesse particular na ciência da Biologia, não estejam interessados nisso.

Sendo cientistas metafóricos, por “genes e ambiente” eles querem dizer tudo que nos faz o que somos, tudo que determina nossas ações. Nós estamos, agora, prontos para traduzir suas alegações para a linguagem comum: tudo que determina quem nós somos, determina quem nós somos; tudo que determina nossas ações, determina nossas ações. Certamente, não temos controle sobre tudo – Greene e Cohen, corretamente, assim supõem. E, seguramente, todos os possíveis fatores combinados determinam nossas ações. Mas, no processo de tirar essa brilhante conclusão eles se afundaram num caos mental e não perceberam a circularidade no processo. Somos compelidos, pelas leis da lógica, a concordar com eles: Sim, banana é banana.

Ilusão do livre-arbítrio

Tendo posto o livre-arbítrio em seu devido lugar, Greene e Cohen estão prontos para nos explicar o porquê de pensarmos que temos tal coisa. Se pensamos que temos alguma coisa que não existe, então, essa coisa deve ser uma ilusão. Assim, eles afirmam que nosso cérebro gera a ilusão de livre-arbítrio para que pensemos que estamos no controle dos processos.

Com toda a modéstia, nossos autores se comparam a Copérnico, Darwin e Freud em seus esforços em desbancar o narcisismo humano. Copérnico removeu a Terra do centro do universo. Darwin removeu os seres humanos do comando da Terra e Freud removeu a consciência como o único determinante do comportamento humano. Vem aí outro golpe baixo – mesmo aquele pequeno controle que você tem sobre suas ações é uma ilusão.

Parece-me, no entanto, que esse é um caso de sadomasoquismo. Greene e Cohen parecem auferir um autêntico prazer em atingir o narcisismo humano, representado pela psicologia popular do livre-arbítrio. Você acha que decidiu ler esse artigo porque o considerou interessante. Mas, não, você não tem a mínima idéia da razão e aquele pensamento que primeiro lhe assaltou foi, realmente, apenas alguma ilusão criada pelo seu cérebro para mascarar sua falta de idéia.

Quanto insulto a seu narcisismo você pode suportar? Essa é a questão, da qual sua humanidade científica depende. Somente cientistas durões, como Greene e Cohen, são corajosos o suficiente para enfrentar o determinismo de frente, sem ilusões. E se você não acha que é uma marionete, eles o esmurrarão com seus experimentos mentais e seus dados imaginários até que você, nocauteado, desistir de si mesmo. E assim o jogo continua. Apesar de eu não desejar negar a diversidade de prazeres sentidos por Greene e Cohen por se tornarem marionetes de uma ficção metafísica e porta-vozes de uma fanfarrice pseudocientífica, desejo, sim, examinar a evidência que eles apresentam para suas assertivas.

Essa evidência vem do trabalho de Daniel Wegner [3], um psicólogo de Harvard e um outro cientista metafórico. De acordo com Wegner, nossas ações não são causadas por nossa vontade. Para fundamentar essa afirmação ele cita a evidência de que a hipnose ou danos cerebrais pode prejudicar nossa noção de livre-arbítrio, de que várias manipulações experimentais podem criar em nós a ilusão de controle.
Nossa resposta imediata é: E daí? Não teremos livre-arbítrio se nossas cabeças forem cortadas. Não teremos livre-arbítrio se estivermos dormindo. Às vezes, erroneamente, pensamos que fizemos algo quando, de fato, não o fizemos. Disso, no entanto, não se pode concluir que o livre-arbítrio é uma ilusão.

Sob hipnose, por exemplo, podemos sentir nosso braço se levantando, mesmo que não o desejemos. Da mesma forma, quando nosso córtex motor ou nosso músculo é estimulado, vários movimentos podem ser induzidos sem nosso controle. Para Wegner, entretanto, essa sensação de “olha, aconteceu!” é a descrição mais precisa do que realmente aconteceu, quando agimos. Nunca ocorreu a ele que não há nenhuma instância de vontade porque aquelas não são instâncias de ações voluntárias sob nosso controle.

Wegner prefere, muito mais, essa sensação de passividade, pois só assim nos sentimos como objetos inanimados. Quando meu braço faz algo incontrolável, ele está agindo como um “objeto científico”, como um tijolo. Nosso livre-arbítrio deve ser uma ilusão porque ele não se encaixa na compreensão científica do mundo, esposada por Wegner.

O filósofo Daniel Dennet acredita que, por conveniência, adotamos a “postura intencional” quando interpretamos o comportamento dos outros seres humanos. A posição de Wegner pode ser descrita como “postura passiva”. Ele prefere sentir-se como o sujeito hipnotizado, o paciente com o dano cerebral ou um zumbi, porque, de acordo com sua Weltanschauung científica, a postura passiva é um reflexo mais preciso da realidade. Mas, a questão permanece: quem está iludido, Wegner ou o homem comum das ruas?

Concordar com Wegner resulta em que nossa sensação de livre-arbítrio é uma ilusão. Greene e Cohen vão um passo mais longe e afirmam que nossa atribuição de livre-arbítrio aos outros é, também, uma ilusão. Eles citam um estudo de Heberlein et al., onde se apresenta o seguinte vídeo para sujeitos humanos: um grande triângulo caça um pequeno círculo na tela, trombando com ele. O pequeno círculo foge repetidamente, e um pequeno triângulo se move, repetidamente, entre o círculo e o grande triângulo. Quando pessoas normais assistem ao vídeo, eles vêem essas interações em termos sociais e intencionais. O grande triângulo tenta ferir o pequeno círculo e o pequeno triângulo tenta proteger o pequeno círculo. Contudo, um paciente com algum dano na amygdala, uma coleção de estruturas cerebrais em forma de amêndoa, não consegue atribuir intenções a essas figuras [4]. Conseqüentemente, para Greene e Cohen, como essa atribuição de livre-arbítrio é gerada por uma área cerebral, ela é, também, uma ilusão.

Os leitores de meu artigo anterior estão familiarizados com a inclinação de Greene e Cohen na direção da especulação evolutiva. Aqui eles atacam novamente. De acordo com sua nova historinha, partes do cérebro, no curso da evolução, se tornam módulos especializados da psicologia popular, isto é, atribuindo livre-arbítrio aos outros; outras partes se tornam módulos especializados da física popular, isto é, acreditando naqueles movimentos tipicamente encontrados nos desenhos de Disney. Sabemos que a física popular está errada, mas, de acordo com Greene e Cohene, a psicologia popular está igualmente errada. Por causa de nossa psicologia popular, encaramos outros objetos animados como causadores sem causa*. Mas, depois que aprendemos neurociência, “quando olhamos as pessoas como sistemas físicos, não podemos vê-las nem mais dignas de reprovação, nem mais dignas de elogio, do que um tijolo”.

Talvez possamos conjeturar, ao lado dos sistemas da física e da psicologia popular, sobre um terceiro sistema do masoquismo cientificista que, enganosamente, faz alguém acreditar que é um tijolo à mercê das forças da natureza, ao invés de um agente responsável por suas ações. A base neurológica para o terceiro sistema, a meu ver, está, ainda, para ser estabelecida.

Então, em resumo, nossos teóricos cabeças-de-tijolo culpam a psicologia popular por considerarmos os agentes morais como causadores sem causa. Como não somos causadores sem causa, não podemos ser agentes morais, e, assim, não podemos ser responsáveis por nossas ações.

Se sou causador sem causa, minhas ações são isoladas de todas as influências externas. Supunha que um homem seja condenado à prisão perpétua por matar um guarda, durante um assalto a banco. Tal punição não evitará que eu faça o mesmo. A prevenção é, realmente, impossível se sou um causador sem causa de minhas ações.

Não obstante, isso não pode, de forma alguma, ser uma suposição oculta de nossas leis, pois, não se explica, assim, a intencionalidade como o foco do sistema legal. De acordo com a psicologia popular que Greene e Cohen atacam incansavelmente, é caracteristicamente humano que, deliberadamente, escolhamos meios apropriados para alcançar os fins desejados. Essa capacidade nos torna agentes morais, alvos de elogios e críticas. Por exemplo, um ato não é reprovável, a menos que haja uma mente culpada (Reum non facit nisi mens rea).

Como Mises repetidamente alerta, o próprio conceito de ação humana, de meios e fins, pressupõe a categoria da causalidade. Responsabilidade não implica que somos motores imóveis no sentido aristotélico, que estejamos de fora da cadeia de causa e efeito, mas significa que, como agentes de ações intencionais, estamos numa peculiar posição em uma longa cadeia de causas que se alonga até o Big Bang. Somos agentes capazes de controlar nossas ações e não um sistema ato-reflexo que transforma estímulo em resposta.

A lei pune, então, crimes que são o resultado da deliberação e da vontade e é indulgente com os acidentes ou aqueles agentes incapazes de ações racionais (p.ex. crianças). Essa seletividade só pode estar baseada na idéia de prevenção. Pois, seria absurdo dizer a alguém para não matar se ele não fosse capaz de deixar de fazê-lo, tanto quanto seria absurdo dizer a alguém para parar seu próprio coração.

Por seu turno, a lei pune crimes que resultam de ações que podemos controlar e podemos, então, evitá-las no futuro. Se a lei se baseasse na suposição da existência de causadores sem causa, não teria sentido fazer distinções entre assassinato deliberado e morte acidental. Penas rígidas seriam aplicadas em todos os crimes. Está fora do escopo deste artigo, naturalmente, a discussão da história do Direito, apesar de ser necessário alertar que o conceito de responsabilidade pessoal em crimes violentos é, de fato, um desenvolvimento relativamente recente. Penas extensíveis a parentes e senhores do criminoso eram comuns em muitas sociedades primitivas. (Aos interessados, sugiro a leitura da obra-prima de Pallack e Maitland ou o livro de Zane sobre a história do Direito).

Lei e liberdade

O livre-arbítrio, no sentido aqui discutido, significa que os seres humanos controlam o que eles fazem. A neurociência não mudará esse fato. A ficção científica, do tipo que Greene e Cohen gostam, pode sempre imaginar o contrário. Nesse sentido, ela não pode ser distinguida de qualquer religião teleológica.

De fato, esse tipo de determinismo, que afirma que os seres humanos não escolhem, não agem, mas sempre são objetos de ações, tem reaparecido inúmeras vezes na história, sob vários disfarces. É um fato histórico que selvagens primitivos, fanáticos religiosos e crentes nas leis inexoráveis da história têm, sempre, advogado alguma versão dele. No desenvolvimento dos sistemas legais, o conceito de responsabilidade pessoal também evoluiu, parcialmente porque alguns seres humanos, depois de se libertarem das superstições e da “postura passiva”, começaram a entender a natureza de suas próprias ações e seus efeitos sobre o mundo. O individualismo ilustrado, devemos lembrar, foi um desenvolvimento tardio e ainda permanece impopular em muitas partes do mundo. A psicologia popular intuitiva da ação humana que possuímos é o produto de tal ilustração. Por outro lado, ao atacar o conceito de livre-arbítrio e da responsabilidade pessoal, Greene e Cohen, meramente, revivem o culto do pensamento irracional, que por muito tempo prevaleceu nas sociedades humanas. Não deve nos surpreender, contudo, em descobrirmos no seu artigo a seguinte sentença: “a racionalidade é apenas presumivelmente correlacionada com o que a maioria realmente se preocupa”. De fato, o que sobra da racionalidade quando você não é responsável por suas ações?

No lugar da razão, esses autores colocam o bem-estar agregado. A lei, reformada à luz do conhecimento neurocientífico, de acordo com os dois autores, tem o objetivo de promover o futuro bem-estar, ao invés de punir os responsáveis por seus crimes. Num artigo anterior, discuti a tentativa desses autores de abolirem as normas morais universais, usando dados de imagens cerebrais, em nome do bem-estar agregado. Devemos, pelo menos, aplaudir sua consistência. Certamente, uma norma moral como o Imperativo Categórico não teria nenhum sentido se não houvesse o livre-arbítrio. Por que dizer a alguém para não roubar se ele não é capaz de obedecer, se o culpado é seu cérebro?

Depois de tudo considerado, seus argumentos se resumem a: (1) criminosos não são responsáveis por seus crimes, pois, tudo que determina quem ele é, determina quem ele é; (2) ao invés de punir criminosos pelo que eles fizeram, a lei deve maximizar o bem-estar futuro.

Eticamente, parece ridículo argumentar contra o bem-estar total da humanidade, tal como logicamente é impossível refutar uma tautologia. A lição a ser aprendida aqui é que você deve sempre se acautelar quando alguém defende algo que não pode ser contraditado, pois há, freqüentemente, um plano oculto anexo ao pacote nada-pode-estar-errado, que se autodestruirá uma vez aberto. Como alertei no artigo anterior, o conceito de bem-estar agregado é vazio, criado por conveniência. Não podemos calcular o que é esse bem-estar, apesar de podermos indiretamente observar, pelo estudo da história, os efeitos de longo prazo de certas regras e práticas em grupos que as seguem.

Num sentido mais recente e concreto de bem-estar, nosso atual sistema legal parece ter sido um dos principais promotores de bem-estar humano, julgando-se pela extraordinária difusão de idéias relevantes no Ocidente, contra freqüentes e fortes resistências dos costumes e práticas locais.

Finalmente, ao longo de seu ensaio, Greene e Cohen enfatizam que o conceito “libertário” de livre-arbítrio que eles atacam não tem nenhuma conexão com a filosofia política. As leis protegem a liberdade e liberdade requer responsabilidade.

Seus argumentos a favor do determinismo são, ainda, outra tentativa de abolir as leis como regras abstratas que se aplicam a todos, indistintamente. Ao contrário, o Estado e seus “especialistas cientistas” decidirão se uma pessoa será ou não um mal para a sociedade, a fim de maximizar o bem-estar futuro em cada caso (isto é, fazer o que aqueles no poder desejam). A própria lei se torna sem sentido. E, ao invés de regra geral que protege a liberdade individual, nas mãos de Greene e Cohen, e em nome da neurociência, a lei será usada como um instrumento para a intervenção estatal e para julgamentos arbitrários, destruindo a liberdade.


____________________________________
Lucretius é um neurobiologista e vive em Mariland, EUA.

1. Greene, J. & Cohen, J. "For the law, neuroscience changes nothing and everything." Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci 359, 1775-85 (2004).

2. von Mises, L. Theory and History (Mises Institute, 1957).

3. Wegner, D. M., "Precis of the illusion of conscious will". Behav Brain Sci 27, 649-59; discussion 659-92 (2004).

4. Heberlein, A. S. & Adolphs, R., "Impaired spontaneous anthropomorphizing despite intact perception and social knowledge". Proc Natl Acad Sci U S A 101, 7487-91 (2004).

* Uncaused causers, no original. O sentido aqui é de quem é causa das coisas, mas não é efeito de nenhuma causa, de quem se determina a si mesmo, livremente. É o conceito ligado à expressão causa sui, no sentido escolástico. (N. do T.)


Publicado pelo Mises Institute.

11 comentários:

Rodrigo RdS disse...

vc acha q as leis físicas controlam nossas ações?

Antonio Emilio Angueth de Araujo disse...

Caro Rodrigo,

Penso que Deus criou a natureza para nós e não contra nós. Estamos emoldurados, por um tempo, nesta natureza e submetidos às suas leis. Elas formam uma moldura na qual pintamos o quadro da nossa vida. A moldura limita de certa forma, mas o pintor é o único responsável pela pintura. O alcance da obra, sua originalidade, seu efeito nos outros seres humanos, têm a ver apenas com o pintor.

Um abraço. Antonio Emilio.

Rodrigo RdS disse...

Mas você entendeu o que eu quis dizer?
Eu quis dizer que, se nossas decisoes e pensamentos sao apenas sinapses, e qualquer evento fisico (as sinapses sao eventos fisicos, certo?) ocorre como a física descreve q ocorrem, entao nossas decisoes e todo o processo mental seria feito pelas leis fisicas (ou conforme o q elas dizem), e não pela gente! Assim, não haveria por que fazer algo, pois tudo, todas as atrocidades do mundo, todos os eventos já estariam determinados pela natureza, pela física!
O que você acha disso? Eu não gosto nem um pouco, isso está me deixando maluco..

Antonio Emilio Angueth de Araujo disse...

Caro Rodrigo,

Não fique maluco. Sua confusão é compreensível. O mundo é que está maluco.

Vou usar aqui um longo texto de C.S. Lewis, na verdade, um trecho de um capítulo do livro Miracles, traduzido por mim. Não sei se vai complicar ainda mais sua cabeça. Continue me enviando suas considerações. Segue o texto.

" É claro que tudo que conhecemos, além de nossas sensações próprias e imediatas, é inferido dessas sensações. Não quero dizer que começamos quando crianças a considerar nossas sensações como ‘evidências’ e, então, argumentamos, conscientemente, sobre a existência do espaço, da matéria e das outras pessoas. Quero dizer que se, depois de termos crescido o suficiente para entender a questão, nossa confiança na existência de algo mais (digamos, do sistema solar ou da Armada Espanhola) for desafiada, nossa argumentação em sua defesa será construída a partir de inferências de nossas sensações imediatas. Colocada na sua forma mais geral, a inferência seria, ‘Como sou apresentado a cores, sons, formas, prazeres e dores que não posso, perfeitamente, prever ou controlar e, como quanto mais os investigo mais regular seu comportamento se mostra, portanto, deve existir alguma coisa além de mim e ela deve ser sistemática’. Dentro dessa inferência muito geral, toda a sorte de cadeias de inferências nos leva a conclusões mais detalhadas. Inferimos a Evolução dos fósseis; inferimos a existência de nosso cérebro a partir do que encontramos dentro dos crânios de outras criaturas parecidas conosco, na sala de dissecação.
Todo o conhecimento possível, então, depende da validade do raciocínio. Se o sentimento de certeza que expressamos pelas palavras deve ser, portanto e desde que é uma percepção real de como as coisas externas à nossa mente realmente são, muito que bem. Mas, se essa certeza é, meramente, um sentimento em nossa mente e não um genuíno insight de realidades além de nós – se a certeza apenas representa o modo como nossa mente trabalha – então, não podemos ter conhecimento algum. A menos que o raciocínio humano seja válido, nenhuma ciência pode ser verdadeira.
Segue-se daí que nenhuma descrição do universo pode ser verdadeira a menos que essa descrição pressuponha a possibilidade de nosso pensamento ser um insight real. Uma teoria que explicasse tudo o mais, em todo o universo, mas que tornasse impossível a crença de que nosso pensamento fosse válido, não seria cogitável. Pois, ela teria sido formulada por meio do pensamento e, se o pensamento não é válido, a própria teoria seria, então, demolida. Ela teria destruído suas próprias credenciais. Ela seria um argumento provando que nenhum argumento seria razoável – uma prova de que não há prova alguma – o que é um contra-senso.
Assim, um materialismo rígido é auto-refutável pela razão levantada, há muito tempo, pelo Prof. Haldane: “ Se meus processos mentais são, totalmente, determinados por movimentos de átomos em meu cérebro, não tenho razão alguma para supor que minhas crenças são verdadeiras ... e, então, não tenho razão para supor que meu cérebro seja composto por átomos.” (Possible Worlds, p. 209)
Mas o Naturalismo, mesmo que não seja puramente materialista, parece envolver a mesma dificuldade, apesar de numa forma um pouco menos óbvia. Ele desmerece nosso processo de raciocínio, ou pelo menos, reduz sua credibilidade a um nível tão baixo que tal processo não pode mais fundamentar o próprio Naturalismo.
A forma mais fácil de mostrar isso é observar os dois sentidos da palavra porque. Podemos dizer, ‘Vovô está doente hoje, porque ele comeu lagosta ontem.’ Podemos, também, dizer, ‘Vovô deve estar doente hoje porque ele ainda não se levantou (e sabemos que ele é, invariavelmente, um madrugador quando está bem).’ Na primeira frase o porque indica uma relação de Causa e Efeito: a comida o adoeceu. Na segunda, há uma relação que os lógicos chamam de Fundamento e Conseqüência. O velho homem ainda não ter se levantado não é a causa de sua indisposição mas a razão pela qual acreditamos que ele esteja mal. Há uma diferença similar entre ‘Ele gritou porque isso o machucou’ (Causa e Efeito) e ‘Isso deve tê-lo machucado porque ele gritou’ (Fundamento e Conseqüência). Estamos especialmente familiarizados com o porque relacionado ao bipolo Fundamento- Conseqüência no raciocínio matemático: ‘A = C porque, como já provamos, ambos são iguais a B.’
Um deles indica uma conexão dinâmica entre eventos ou ‘estados das coisas’; o outro, uma relação lógica entre crenças ou asserções.
Assim, uma cadeia de raciocínio não tem nenhum valor como forma de encontrar a verdade a menos que cada passo da cadeia seja conectado com o que vem antes por meio de uma relação Fundamento-Conseqüência. Se nosso B não segue logicamente de nosso A, pensamos em vão. Se o que pensamos ao final do nosso raciocínio for verdade, a resposta correta à questão, ‘Por que você pensa assim?’deve começar com um porque relacionado ao bipolo Fundamento-Conseqüência.
Por outro lado, cada evento na Natureza deve estar conectado com eventos prévios por uma relação de Causa e Efeito. Mas nossos atos de pensamento são eventos. Portanto, a verdadeira resposta à ‘Porque você pensa assim?’deve começar por um porque relacionado ao bipolo Causa-Efeito.
A menos que nossa conclusão seja uma conseqüência lógica de um fundamento, ela será inútil e pode ser verdadeira apenas por acaso. A menos que seja a causa de um efeito, ela não poderá, absolutamente, ocorrer. Parece, portanto, como se, para que uma cadeia de raciocínio tenha algum valor, esses dois sistemas de conexão devem ser aplicados, simultaneamente, à mesma série de atos mentais.
Mas, infelizmente, os dois sistemas são, totalmente, distintos. Ser ‘causa de’ não é ser ‘prova de’. Wishful thinkings, preconceitos e alucinações são todas causas sem fundamentos. De fato, ser causa é tão distinto de ser prova que nos comportamos num debate como se eles fossem mutuamente exclusivos. A mera existência de provas para uma crença é, popularmente, considerada como uma suspeita de que ela seja sem fundamento e a forma mais popular de desacreditar as opiniões de alguém é explicá-las casualmente – ‘Você diz isso porque (Causa e Efeito) você é capitalista, ou um hipocondríaco, ou um mero homem, ou somente uma mulher.’ A dedução é que se causas explicam, totalmente, uma crença, então, como as causas funcionam inevitavelmente, a crença teria surgido, tendo ela fundamento ou não. Não precisamos, por assim dizer, considerar os fundamentos de alguma coisa que possa ser, totalmente, explicada sem eles.
Mas, mesmo que os fundamentos existam, o que, exatamente, eles tem a ver com a ocorrência real da crença como um evento psicológico? Se é um evento, ele dever ter sido causado. Ele deve, de fato, ser um elo numa cadeia causal que se alonga do início ao fim dos tempos. Como uma ninharia tal como a falta de fundamentos lógicos poderia impedir a ocorrência de uma crença, ou como a existência de fundamento poderia promovê-la?
Parece que há só uma resposta possível. Devemos admitir que, tal como uma das formas na qual um evento mental causa outro evento mental subseqüente é a Associação (quando eu penso em nabo, penso na minha primeira escola), uma outra forma de causação entre eventos mentais é, simplesmente, um ser fundamento do outro. Pois, então, ser uma causa e ser uma prova coincidiria.
Mas isso, dessa forma, é, claramente, uma inverdade. Sabemos, por experiência, que um pensamento não causa necessariamente todos, ou mesmo algum, dos pensamentos que dele segue como conseqüências de um fundamento. Estaríamos em apuros se nunca pudéssemos pensar ‘Isso é vidro’ sem formular todas as inferências possíveis. É impossível formulá-las todas; muito freqüentemente não formulamos nenhuma. Devemos consertar nossa lei acima sugerida. Um pensamento pode causar um outro não por ser mas, por ser visto como, um fundamento para ele.
Se você suspeita da metáfora sensória visto, você pode substituí-la por apreendido ou entendido ou, simplesmente, considerado. Isso faz pouca diferença, pois, todas essas palavras nos relembram o que o ato de pensar realmente é. Atos de pensamento são, indubitavelmente, eventos; mas eventos de um tipo muito especial. Eles são ‘sobre’ alguma coisa diferente deles próprios e podem ser verdadeiros ou falsos. Eventos normais não são, em geral, sobre alguma coisa e não podem ser verdadeiros ou falsos. ( Dizer ‘esses eventos, ou fatos são falsos’ significa, é claro, que as considerações de alguém sobre eles são falsas). Portanto, atos de inferência podem, e devem, ser considerados de duas perspectivas diferentes. De um lado, eles são eventos subjetivos, itens da história psicológica de alguém. De outro lado, eles são insights sobre, ou conhecimentos de, algo diferente deles. O que, do primeiro ponto de vista, é uma transição psicológica do pensamento A para o pensamento B, em algum momento particular, numa mente particular é, do ponto de vista do pensador, a percepção de uma dedução (se A, então B). Quando estamos adotando o ponto de vista psicológico, podemos usar o passado como tempo verbal. ‘B seguiu-se de A em meu pensamento.’ Mas quando anunciamos uma dedução sempre usamos o presente – ‘B segue-se de A’. Se o ‘segue-se de’ for verdade, alguma vez, em sentido lógico, ele sempre será. E não podemos rejeitar o segundo ponto de vista como uma ilusão subjetiva sem suspeitar de todo o conhecimento humano. Pois, não podemos conhecer nada além de nossas sensações de momento, a menos que, o ato de inferência seja o alegado insight real.
Mas isso só acontece de certa forma. O ato de conhecer deve ser determinado, num certo sentido, somente pelo que é conhecido; devemos conhecer uma coisa como sendo assim somente porque ela é assim. Isso é o significado de conhecer. Você pode considerar isso um porque relacionado ao bipolo Causa-Efeito e chamar o ‘ser conhecido’ de um modo de causação, se desejar. Mas ele é um modo especial. O ato de conhecer tem, sem dúvida, várias condições, sem as quais não pode acontecer: a atenção e os estados de vontade e saúde que isso pressupõe. Mas seu caráter positivo deve ser determinado pela verdade conhecida. Se ela pudesse ser explicada, totalmente, por outras fontes ela deixaria de ser conhecimento, tal como (usando uma comparação sensória) o zumbido em meus ouvidos deixa de ser o que conhecemos por ‘audição’ se ele puder ser explicado por outras causas além de um barulho no mundo externo – como, digamos, um zumbido causado por uma forte gripe. Se o que parece ser um ato de conhecer é, parcialmente, explicado por outras causas, então, o conhecimento (propriamente dito) nele contido é somente o que elas (as causas) deixam de fora, somente o que exige, para sua explicação, a coisa conhecida – tal como uma audição real é o que sobra depois de se descontar o zumbido causado pela gripe. Algo que afirma explicar, totalmente, nosso raciocínio sem introduzir um ato de conhecimento determinado pelo que é conhecido, é uma teoria da impossibilidade do raciocínio.
Mas isso, como me parece, é o que o Naturalismo está fadado a fazer. Ele oferece o que afirma ser uma total explicação de nosso comportamento mental; mas essa explicação, quando examinada, não deixa lugar para os atos de conhecimento ou insights a respeito do valor de nosso pensamento, como meio de atingir a verdade.
Todos concordam que a razão, ou mesmo a consciência e a própria vida apareceram tardiamente na Natureza. Portanto, se não há nada além da Natureza, a razão deve ter passado a existir por um processo histórico. E, é claro, para o naturalista, esse processo não foi projetado para produzir um comportamento mental que possa encontrar a verdade. Não existiu nenhum Projetista; e, de fato, até que houvesse pensadores, não havia nem verdade nem falsidade. O tipo de comportamento mental que, agora, chamamos pensamento racional ou inferência, deve, portanto, ter ‘evoluído’ por seleção natural, por um gradual processo de eliminação de tipos menos capazes de sobreviver.
No início, então, nossos pensamentos não eram racionais. Ou seja, todos os nossos pensamentos eram, como muitos de nossos pensamentos ainda são, meramente eventos subjetivos, não apreensões da verdade objetiva. Aqueles que tinham uma causa externa a nós mesmos eram respostas a estímulos (como nossas dores). Assim, a seleção natural poderia operar somente eliminando repostas que fossem biologicamente prejudiciais e multiplicando aquelas que tendessem para a sobrevivência. Mas, não é concebível que qualquer aprimoramento de repostas pudesse torná-las atos de insight, ou mesmo, remotamente, pudesse tender a isso. A relação entre estímulo e resposta é, inteiramente, diferente daquela entre conhecimento e a verdade conhecida. Nossa visão física é uma resposta à luz muito mais útil do que aquela de organismos primitivos que têm apenas um órgão foto-sensível. Mas, nem esse aprimoramento, nem quaisquer outros aprimoramentos possíveis que pudéssemos supor, poderia nos aproximar, um milímetro sequer, do conhecimento da luz. O aprimoramento é, certamente, algo sem o qual não poderíamos ter tido tal conhecimento. Mas, o conhecimento é atingido por meio de experimentos e inferências sobre eles, não por meio de refinamentos na reposta. Não são os homens com olhos especialmente bons que conhecem a luz, mas homens que estudaram as ciências relevantes a esse conhecimento. Da mesma forma, nossas respostas psicológicas ao ambiente – nossas curiosidades, aversões, prazeres, expectativas – poderiam ser indefinidamente aprimoradas (do ponto de vista biológico) sem se tornarem nada além de respostas. Tal perfeição de repostas não-racionais, longe de transformá-las em inferências válidas, podem ser concebidas como um método diferente de atingir a sobrevivência – uma alternativa à razão. Um condicionamento que nos assegurasse que nunca sentiríamos prazer exceto pelas coisas úteis, nem aversão exceto pelas coisas perigosas e que o grau de ambos fossem, perfeitamente, proporcional ao grau da utilidade ou do perigo real, poderia nos servir tanto – em algumas circunstâncias, melhor – que a razão.
Além da seleção natural há, entretanto, a experiência – experiência, originalmente individual, mas passada adiante por tradição e educação. Poderia ser considerado que isso, no curso de milênios, pudesse conjurar o comportamento mental que chamamos razão – em outras palavras, a prática da inferência – a partir do comportamento mental que era, originalmente, não racional. Experiências repetidas de encontrar o fogo (o seus restos) onde existia fumaça, condicionaria o homem a esperar pelo fogo onde ele visse a fumaça. Essa expectativa, expressa pela frase ‘Onde há fumaça, há fogo’ se torna o que chamamos de inferência. Todas as nossas inferências surgiram assim?
Se isso aconteceu, todas elas são inferências inválidas. Tal processo, sem dúvida, produzirá expectativas. Ele treinará o homem a esperar fogo onde ele vê fumaça, da mesma forma que ele o treinou a esperar que todos os cisnes fossem brancos (até que ele viu o cisne preto) ou que a água sempre ferveria a 100º (até que alguém fez um piquenique numa montanha). Tais expectativas não são inferências e não precisam ser verdades. A suposição de que as coisas que se associaram no passado se associarão sempre no futuro é um princípio orientador não do comportamento racional, mas do animal. A razão surge, precisamente, quando você faz a inferência ‘Como freqüentemente associadas, portanto, provavelmente conectadas’ e segue na tentativa de descobrir a conexão. Quando você tiver descoberto o que a fumaça é, você, então, será capaz de substituir a mera expectativa de fogo por uma genuína inferência. Até que isso seja feito, a razão reconhece a expectativa como mera expectativa. Onde isso não precisar ser feito – isto é, onde a inferência dependa de um axioma – não apelamos, de forma alguma, para a experiência passada. Minha crença de que as coisas que são iguais a uma mesma coisa são iguais entre si não é, absolutamente, baseada no fato de que eu nunca as tenha surpreendido comportando-se de outra forma. Eu vejo que isso ‘deve’ ser assim. Que algumas pessoas, atualmente, chamam axiomas de tautologias, me parece irrelevante. É por meio dessas ‘tautologias’ que avançamos de um estado de menos conhecimento para um outro de mais conhecimento. E chamá-los de tautologias é uma outra maneira de dizer que eles são completa e certamente conhecidos. Compreender, totalmente, que A implica B (uma vez que compreendamos) envolve a admissão de que a asserção A e a asserção B estão, no fundo, na mesma asserção. O grau no qual qualquer proposição verdadeira é uma tautologia depende do grau de seu insight.
9 x 7 = 63 é uma tautologia para um aritmético perfeito, mas não para uma criança que está aprendendo a tabela de multiplicação ou para um calculista primitivo que atinge o resultado somando sete nove vezes. Se a Natureza é um sistema totalmente interligado, então, cada verdadeira afirmação sobre ela (tal como, houve um verão escaldante em 1959) seria uma tautologia para uma inteligência que pudesse apreender esse sistema em sua inteireza. ‘Deus é amor’ pode ser uma tautologia para um Serafim; não para o homem.
‘Mas’, se dirá, ‘é incontestável que atingimos, de fato, a verdade por meio de inferências’. Certamente. O naturalista e eu concordamos com isso. Não poderíamos discutir nada se não concordássemos nisso. A diferença que estou apresentando é que ele descreve, e eu não, uma história da evolução da razão que é inconsistente com a alegação que ele e eu fazemos a favor da inferência, na medida em que a praticamos. Pois, sua história é, e pela natureza do caso só pode ser, uma explicação, em termos de Causa e Efeito, de como as pessoas chegaram a pensar da forma como elas fazem. E isso, é claro, deixa no ar uma pergunta muito diferente sobre qual seria, possivelmente, a justificativa deles pensarem dessa forma. Isso impõe ao naturalista a tarefa muito embaraçosa de tentar mostrar como um produto evolucionário que ele descreveu poderia ter um poder de ‘ver’ as verdades.
Mas a própria tentativa é absurda. Isso é mais bem visto se considerarmos a mais modesta e quase a mais desesperada forma em que isso pode ser feito. O Naturalista poderia dizer, ‘Bem, talvez não possamos, exatamente, ver – ainda não – como a seleção natural transformaria comportamentos sub-racionais em inferências que atingiriam a verdade. Mas, estamos certos de que isso, de fato, aconteceu. Pois, a seleção natural objetiva preservar e aprimorar o comportamento útil. E, também, consideramos nossos hábitos de inferência úteis. E, se eles são úteis, eles devem alcançar a verdade’. Mas, note o que estamos fazendo. A própria inferência está sendo julgada: isto é, o Naturalista deu uma explicação do que ele achava que seriam nossas inferências que sugere que elas não são, em absoluto, insights reais. Nós, e ele, queremos ter certeza. E a certeza mostra ser mais uma inferência (se útil, então verdadeira) – como se essa inferência não estivesse, uma vez que aceitemos sua descrição evolucionária, sob a mesma suspeição que todo o resto. Se o valor de nosso raciocínio está sob suspeita, você não pode tentar estabelecê-lo pelo raciocínio. Se, como eu disse acima, uma prova de que não há provas não tem sentido, também não tem sentido uma prova de que há provas. A razão é nosso ponto de partida. Não há sentido em atacá-la ou defendê-la. Se, por tratá-la como mero fenômeno você se pôs de fora dela, não há, então, nenhuma forma, exceto fugindo da questão, de se colocar dentro, novamente."

Rodrigo RdS disse...

Acho que entendi...
Mas há um problema: De fato, sempre escolhemos aquilo que nos parece ser melhor. Sendo assim, dentre varias opcoes, sempre fazemos a mesma escolha: aquela que nos parece ser melhor. O que diferencia as escolhas não são fatores anteriores? Isso prova que não há livre-arbítrio, pois os fatores é que fazem as nossas escolhas.. As escolhas mudam conforme os fatores mudam... Isso não seria um indício q, de fato, nossa mente é "controlada" pelas leis físicas causais? E isso não leva a um fatalismo?

Antonio Emilio Angueth de Araujo disse...

Caro Rodrigo,

É claro que a operação de nossa mente se faz através das leis físicas. Ou seja, todo pensamento, toda emoção, causa uma certa cadeia de reações químicas no cérebro que pode ser acompanhada por aparelhos medidores.

Mas dizer que as reações são o pensamento ou são a emoção é confundir causa com efeito. Certa vez eu traduzi um artigo de Gene Callahan que trata desse assunto. Ele está aqui no meu blog: http://angueth.blogspot.com/2005/08/presuno-sociobiolgica.html .

Sobre a liberdade de consciência em condições extremas de vida, Viktor Frankl escreveu um livro magistral, "Em busca de sentido" (Editora Vozes). Nele ele narra suas experiências em seis campos de concentração nazistas e como algumas pessoas, mesmo naquelas condições, comandavam suas consciências. Há um artigo de Olavo de Carvalho sobre Frankl muito bom (http://www.olavodecarvalho.org/textos/1a_leitura_2005_nov.htm). Olavo também escreve sobre ele num capítulo de seu "Imbecil Coletivo II" intitulado A mensagem de Viktor Frankl. Esse capítulo vale a pena ler.

Rodrigo RdS disse...

"todo pensamento, toda emoção, causa uma certa cadeia de reações químicas no cérebro[...]"

O que são pensamentos e emoções então? Nao seriam eventos fisicos ocorrendo no cerebro? Isso não significa que são controlados pela física? Quer dizer, se são matéria, o que causa o pensamento e a emoção não seria um sistema automatico regido pela física, assim como o resto do nosso corpo? (espero que você tenha entendido o que quero dizer..)

Antonio Emilio Angueth de Araujo disse...

Caro Rodrigo,

Os pensamentos, apesar de causarem reações químicas no cérebro, não são estas reações químicas. A pedra jogada num lago causa ondas, mas ela não é onda.

A máquina cerebral serve à razão, centelha divina que nos é dada por Deus. A razão é atributo da alma, não tem nada a ver com a matéria, apesar de causar fenômenos materiais. Aliás, toda a materia foi criada do nada por Deus. Esta é a realidade.

Antonio Emílio

Anônimo disse...

caro Antonio Emilio Angueth de Araujo

você acha mesmo que tem a resposta para tudo recorrendo ao Deus.
Mas quem cria a materia que advém do nada, é o proprio nada! é porque a matéria só pode existir advindo do seu contrario, e não porque meros humanos acham que têm um Deus que se deu ao trabalho de nos dar a razão. O nosso Deus são as leis que regem a materia! O mundo não foi feito pra nós, deixe-se de iludir com essas tretas.Nós podemos servir a materia tentando compreender-mo-nos para começar, e depois sim tentar compreender porque existe a materia.

R. N. disse...

Sr. Antonio Emilio Angueth,

Você está certíssimo. Somos, em parte, condicionados pelo mundo corporal. Estamos limitados pela "carne", como diz a Bíblia. Mas essa limitação, contudo, não extinguiu nosso livre-arbítrio, posto que ele continua existindo em nós, ainda que fraco: é a espiritualidade da alma, a imagem de Deus em nós. Deus, que é Ser, Inteligência, Vontade e Liberdade. Nós também, habitando na carne, conservamos ainda substancialidade ao longo das transformações físicas, conservamos inteligência, vontade e liberdade, que são participações no Espírito Divino.

Nossa alma, portanto, é espiritual. Mas não é apenas espiritual, é também vegetativa e sensitiva. Como não somos Anjos, nossa espiritualidade age através das imagens sensíveis, da estimativa própria dos animais, etc. Mas temos, sim, inteligência e vontade, que estão acima do conhecimento sensível próprio dos animais.

Leiam aqui o texto "Antropologia Escolástica", de Luiz Gonzaga de Carvalho, filho do filósofo Olavo de Carvalho:

http://praedicatorum.webng.com/gonzaga1.pdf

Recomendo a leitura também de "Lições de Filosofia Tomista" de Manoel Correa de Barros.

Não podemos nos deixar levar pela onda do Anticristo cientificista. Isso seria abandonar a razão, acreditar na "matéria que veio do nada e adquiriu leis por si própria". Um tremendo absurdo. E ainda jogar no lixo a moral, o direito, o sentido da existência, etc. É aceitar o absurdo, o abismo e o nada.

Os filósofos que hoje se chamam "cientistas", e que não fazem ciência coisa nenhuma, não conseguem compreender com a inteligência realidades elevadas e jogam na realidade a culpa por suas próprias fraquezas espirituais. Recomendo a leitura de "O Saber dos Antigos", de Giovanni Reale.

Gostei muito deste blog.
Abraços. Laudetur Iesus Christus

Unknown disse...

Muito bom! Mas, não sou eu que está dizendo isso,é meu cérebro.